Artigo original • Revisão por pares • Acesso aberto
Aproximações entre os estudos da sociologia pragmática e da ambientalização
Approximations between pragmatic sociology and environmentalization studies
Lígia Scarpa Bensadon
Resumo Este texto articula a perspectiva da sociologia pragmática com a noção da ambientalização, no sentido de perceber suas interfaces e contribuir com pesquisas no campo socioambiental. Desde o estudo teórico, especialmente de artigos e livros, partimos por apresentar as duas abordagens, trazendo exemplos empíricos. Percebemos diálogos entre a ambientalização e a sociologia pragmática, aprofundando a análise ao dar atenção às materialidades, às situações de ação, às formas de valorações que as pessoas conferem ao meio ambiente e às afetividades nas relações entre humanos e não humanos. A compreensão dos sentidos do ambiental vinculado a contextos, discursos, objetos, provas, associações e as razões do agir desdobra a análise sobre o que e como se ambientaliza. Nisso, inclui-se o entendimento de como são operadas as ambientalizações e quais futuros indicam na era da emergência climática. Por fim, trazemos um quadro analítico que sistematiza um ciclo do processo de ambientalização. Palavras-chave: Relações Sociedade-natureza. Conflitos socioambientais. Revisão teórica. Valorações ambientais. Materialidades. Abstract This text articulates the perspective of pragmatic sociology with the notion of environmentalization, in order to understand their interfaces and contribute to research in the socio-environmental field. From a theoretical study, especially of articles and books, we set out to present the two approaches, bringing empirical examples. We noticed dialogues between environmentalization and pragmatic sociology, deepening the analysis by paying attention to materialities, action situations, the forms of valuations that people give to the environment and the affectivities articulated between humans and non-humans. Understanding the meanings of the environment in relation to contexts, discourses, objects, evidence, associations and the reasons for action unfolds the analysis of what and how the environment is environmentalized. This includes understanding how environmentalizations operate and what futures they indicate in the era of the climate emergency. Finally, we present an analytical framework that systematizes a cycle of the environmentalization process. Keywords: Society-nature relations. Socio-environmental conflicts. Theoretical review. Environmental valuations. Materialities. | Submissão: Aceite: Publicação: |
Citação sugerida BENSADON, Lígia Scarpa. Aproximações entre os estudos da sociologia pragmática e da ambientalização. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 19, p. 1-26, e025003, jan./dez. 2025. Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0). |
Apresentação
A elaboração deste artigo, inserido no contexto dos estudos do doutorado, articula a compreensão da sociologia pragmática com a noção de “ambientalização”. Longe de abarcar todos os autores, elaborar algum tipo de balanço ou esgotar o assunto, o presente texto vincula a abordagem da sociologia pragmática às pesquisas no âmbito socioambiental e territorial. Examina, em particular, a noção de “ambientalização”, inspirada em um conjunto de estudos de caso coordenado pelo antropólogo brasileiro José Sérgio Leite Lopes, entre 1996 e 2000, no Programa de Antropologia Política do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Leite Lopes et al., 2004).
Destacamos que como a abordagem da sociologia pragmática se cruza com diversos domínios da pesquisa nas ciências sociais, é comum o estudo específico por temáticas ou determinados autores, sem que se utilize, necessariamente e em especial no Brasil, o termo “sociologia pragmática”.
Para a presente reflexão, pretendemos articular de que forma a sociologia pragmática pode trazer ferramentas e contribuições teóricas e analíticas nos estudos de como a relação ambiental é apropriada pelos atores nas dinâmicas territoriais de conflitos socioambientais, no que chamamos aqui de “ambientalização”.
Este texto introduz primeiro a proposição da ambientalização, examinando de que forma esta chave analítica pode elucidar sentidos e modos de traduzir a relação socioambiental em diferentes contextos. Em segundo lugar, apresenta a abordagem teórica e metodológica da sociologia pragmática e suas contribuições ao estudo das ambientalizações. Essa leitura é detalhada no estudo de alguns autores, especialmente desde seus artigos publicados, trazendo alguns exemplos desta perspectiva e as consequências à investigação com este tipo de abordagem. Por fim, associamos de forma mais direta as duas perspectivas, no sentido de provocar sinergias e mais potencialidades investigativas.
A ambientalização como forma de compreensão das dinâmicas e conflitos socioambientais
A ideia da ambientalização é retratada de diferentes formas na literatura recente, não havendo uma definição única do termo. Por exemplo, há uma quantidade expressiva de enfoques sobre a “ambientalização curricular” que analisa a inserção dos temas ambientais nos currículos escolares, em particular nos cursos de graduação, na expectativa de que conteúdos de sustentabilidade e educação ambiental se integrem na formação superior. Podemos citar o exemplo dos cursos na área da saúde (Oliveira; Mazzarino; Lima, 2023) ou de programas e cursos já existentes (Aguiar, 2021; Rodrigues, 2022) que trazem orientações legais e institucionais sobre a importância e efetiva inserção da educação ambiental de forma interdisciplinar e/ou analisam a implementação de determinadas experiências.
De modo geral, nas pesquisas em ciências sociais, a noção de ambientalização é problematizada pela análise nas formas de linguagens e ações sociais diante de conflitos socioambientais, como argumento, legitimidade e justificativa incorporada por variados atores sociais, tendo como principais referências Leite Lopes et al. (2004) e Leite Lopes (2006).
Por exemplo, Teisserenc (2016) analisa a ambientalização como exigência ambiental impulsionada pela criação de Reservas Extrativistas (Resex) e seus efeitos na politização de dinâmicas locais de participação. A autora examinou a ocorrência de práticas participativas e articulações entre populações tradicionais, especialistas e gestores públicos em duas Resex no Pará. Ela destaca os efeitos positivos no processo de mobilização de atores e recursos no desenvolvimento territorial promovido pela Resex, no que denomina “governança territorial ambiental”.
Silva (2021) utiliza a noção de ambientalização em comunidades do estado de Pernambuco, para caracterizar a forma como empresas de produção de energia eólica articulam suas justificativas ambientais, ou a ecologização de seus discursos. Essa produção longe de ser “verde” ou “limpa” reproduz lógicas de apropriação de terras e recursos naturais com consequências socioeconômicas, psíquicas e ambientais negativas para as comunidades afetadas. Tal prática se insere como exemplo do capitalismo verde, cruzando assim as leituras da financeirização, estrangeirização de terras e ambientalização.
Para Lacerda (2022) a ambientalização é compreendida no processo de mobilização coletiva diante de problemas no processo da pavimentação de uma rodovia no Pará, a BR-163. O conflito reuniu colonos, produtores rurais, garimpeiros, madeireiros e, em alguns momentos, indígenas, em uma coalizão regional perante o estado. Dadas as exigências ambientais estatais após o início da pavimentação, em 2004, a ambientalização foi retratada na ação do então governo. As exigências ambientais eram criticadas, em especial pelos produtores rurais, como entraves ao trabalho e desenvolvimento daqueles que colonizaram a região. Quem antes era visto como herói no período da ditadura, passava a ser visto como vilão no novo contexto ambiental. As manifestações apontavam argumentos como a perda de “áreas produtivas para unidades de conservação ambiental, prejudicando o desenvolvimento sustentável da região” (Lacerda, 2022, p. 34), ou seja, uma revolta diante do que era lido como ambientalização expresso em novas legislações e políticas, ou ainda, na “ambientalização do governo” e “crise da ambientalização” (Lacerda, 2023).
A ambientalização também foi vinculada à noção de “politização do consumo”, desde a observação das práticas de consumo que incluem responsabilidades e cuidados na escolha de alimentos e outros produtos. Nesta abordagem adotam-se valores políticos, morais e ecológicos na busca de um menor impacto no meio ambiente, como um consumidor mais cidadão (Araújo, 2010).
A noção de ambientalização nos estudos de Leite Lopes et al. (2004) emergiu de uma pesquisa que retratou os diferentes sentidos e usos da participação da população no controle do meio ambiente, realizada por uma ampla equipe interinstitucional com apoios diversos e utilizando metodologias comparativas, etnográficas, entrevistas, acesso a documentos, reuniões e questionários. Levantou-se a percepção social acerca da poluição industrial, seus riscos e reflexos nas instâncias públicas, em cinco estudos de caso: Angra, Itaguaí, Volta Redonda, Minas Gerais e Argentina (Leite Lopes et al., 2004).
A pesquisa captou que a percepção e a reação dos cidadãos afetados diretamente por uma fonte de poluição não eram imediatas, mas que as noções de risco e poluição foram social e culturalmente construídas, sem que o dano físico fosse suficiente para provocar mobilizações nas comunidades. Tais percepções também variaram em função de interesses e posições ocupadas por diferentes agentes, sendo diferencialmente apropriadas por empresários, camponeses e trabalhadores industriais, bem como entre homens e mulheres. Nos territórios dependentes de uma determinada empresa industrial houve uma tendência a uma maior naturalização dos impactos e riscos dos poluentes, diante de eventuais ganhos econômicos, ainda que isso também fosse variável.
Nos casos analisados, observou-se uma correlação entre experiências organizativas e participativas em diferentes contextos (associações de moradores, sindicatos, associações de pescadores, de camponeses, associações profissionais e científicas, entre outras), com a capacidade de apreensão e de ação contra a poluição industrial. Além disso, as dinâmicas de privatização e a geração de passivos ambientais que demandam compensações, ampliaram a percepção das pessoas afetadas sobre seus direitos sociais e ambientais.
A mídia e o contato com especialistas também influenciaram as concepções das pessoas envolvidas nesses conflitos, contribuindo para a incorporação de novas referências conceituais em torno dos problemas enfrentados. Isso ainda se intensificou diante das alterações ocorridas nas dinâmicas cotidianas destas pessoas, por exemplo, em Itaguaí, ante a poluição causada por empresas petroquímicas na baía de Sepetiba-RJ, impactando moradores com a mortandade de peixes, a sujeira nas praias e problemas de saúde. O meio ambiente pode ser, então, entendido como uma linguagem que se modula em cada contexto específico, perante os conflitos e tensões presentes em cada território.
A pesquisa em questão identificou um conjunto de dinâmicas que foram conceitualizadas pelos pesquisadores(as) como “processos de ambientalização”. Esse neologismo foi criado com o intuito de designar um processo histórico de construção de novos fenômenos e novas percepções internalizadas por indivíduos e grupos sociais, assim como décadas atrás surgiram os termos neoliberalismo, financeirização e industrialização, segundo os autores. As diferentes faces da questão pública do “meio ambiente” vão sendo incorporadas e naturalizadas nas mudanças de forma e de linguagem dos conflitos sociais e na sua institucionalização parcial. Essa emergência histórica dos processos de ambientalização encontra-se associada, também, a “mudanças no estado e no comportamento das pessoas (no trabalho, na vida cotidiana, no lazer)” e nas empresas (Leite Lopes et al., 2004, p. 19; Leite Lopes, 2006). Os autores então denominaram a “ambientalização dos conflitos sociais” pelos inúmeros conflitos na construção institucional do meio ambiente, especialmente entre diferentes e desiguais grupos sociais referentes aos meios e aos efeitos de poluição, bem como entre militantes e técnico-administrativos.
Nos casos investigados, houve um encontro entre lutas locais e os conflitos ambientais, emergindo uma nova leitura destes, também diante do contato com especialistas, pressionando por leis e regulamentos em face das situações problemáticas enfrentadas. Por exemplo,
lideranças associativas dos pescadores de Itaguaí adquiriram uma linguagem biologizante no tratamento da poluição da Baía de Sepetiba por uma fábrica de zinco e seu agravamento com as obras do Porto de Sepetiba; Operários leucopênicos de Volta Redonda adquiriram uma linguagem médica e da saúde do trabalho ao longo de seus conflitos com a Companhia Siderúrgica Nacional e o Instituto Nacional do Seguro Social; Representantes de associações de moradores em Angra dos Reis adquiriram um conhecimento de termos e procedimentos urbanísticos, devido à interiorização de argumentos e debates na aplicação de itens do Plano Diretor da cidade aos casos de licenciamento de novas atividades (Leite Lopes, 2006, p. 48).
Além disso, a pesquisa mostrou que, em face dos problemas regionais derivados de danos ambientais, a experiência local, coletiva e pessoal foi um dado fundamental no reconhecimento dos problemas ambientais e no conhecimento específico ante o efeito de proximidade física com uma fonte poluidora.
A questão ambiental é, assim, esse processo pelo qual antigos sentimentos de incômodo, dor, perda, se transformam em reivindicações legitimadas, passando da percepção individual e de pequenos grupos para tornar-se uma questão coletiva e pública. [...] Essa transformação é acompanhada de um novo léxico que se difunde entre grupos sociais diversos e é diferencialmente apropriado por eles (Leite Lopes et al., 2004, p. 34).
Os autores atribuem a emergência da ambientalização a alguns fatores que constroem essa nova questão social e pública, que resumimos: 1. A crescente “importância da esfera institucional do meio ambiente, entre os anos 1970 e o final do século XX”, com a criação de leis e secretarias. Isso como reflexo de múltiplas causas, dentre elas: uma nova compreensão dos gestores sobre as problemáticas ambientais; o discurso ambiental como um requisito para captação de financiamentos externos; a área ambiental como campo de trabalho para os novos e antigos profissionais que se formavam em especialidades ambientais. 2. “Os conflitos sociais em nível local e seus efeitos na interiorização de novas práticas”, além da explicitação dos problemas ambientais de forma mais ampliada na sociedade. 3. “A educação ambiental como novo código de comportamento individual e coletivo”, normalizando práticas cotidianas, como o uso da água, o descarte de resíduos, entre outras práticas que podem, de outro lado, despolitizar origens e soluções de problemas ambientais que ultrapassam condutas individualizadas. 4. A questão da “participação”, que envolveu a criação de conselhos e outros canais de relação da sociedade com o poder público, o que abriu caminho para pressões, usos retóricos e políticos da questão ambiental. Tais espaços também explicitam as diferenças e desigualdades entre profissionais e especialistas da área ambiental e as pessoas leigas e, finalmente, 5. “A questão ambiental como nova fonte de legitimidade e de argumentação nos conflitos”, ampliando sua polissemia, usada como uma referência tanto por empresas, na defesa de tecnologias mais eficientes, quanto pelas populações atingidas que passaram a qualificar seus conflitos e problemas sob a ótica ambiental (Leite Lopes et al., 2004, p. 19).
Aos cinco itens anteriores, somamos outros três fatores referentes à importância de compreender o crescimento da ambientalização no contexto nacional. Um mais antecedente, ao reconhecer: 6. A resistência molecular de grupos localizados, especialmente aqueles oriundos da classe média escolarizada que vão ser nomeados como “ambientalistas”, cuja resistência influencia espaços políticos, legislações, discussões públicas e partidárias. E outros dois fatores mais recentes: 7. O papel dos especialistas ambientais e climáticos diante dos alertas e dos dados científicos sobre o aquecimento global, e, ainda, 8. Acentuação dos problemas vividos pelas pessoas e a circulação de informações sobre situações locais e globais de extremos climáticos, como ondas de calor, inundações, secas, queimadas, contaminações, entre outros.
Observamos, como Pádua (2010; 1999), que embora o tema ambiental e suas preocupações sejam um dos fenômenos mais expressivos da história recente, que mobiliza comportamentos, ações e políticas públicas em diversas escalas, sua emergência aparece em outros momentos da história. Por exemplo, na Antiguidade diante dos efeitos da natureza sobre a sociedade e, de forma mais marcante, no período moderno, desde o século XVIII, perante as alterações do ambiente pela sociedade. No caso do Brasil, há antecedentes na expansão colonial portuguesa, ante os impactos das plantations. Por esta perspectiva, o ambientalismo e suas ambientalizações não seriam o resultado externo e tardio da modernidade, mas o resultado desta mesma modernidade, desenvolvendo-se com a modernidade, numa relação pendular.
Além disso, a incorporação da ambientalização não ocorre de forma única, mas repleta de ficções e controles por novos e velhos atores no capitalismo, que transitam entre seu aprofundamento para extração de mais valor e a busca por alguma transformação possível. Assim, o conceito de meio ambiente torna-se plástico ao ser expressado com outras questões públicas e privadas, entre conflitos e reivindicações latentes, antigas ou novas, por populações atingidas, mas também pelas empresas poluidoras responsáveis. No último caso, uma tendência foi a contratação de profissionais ambientais, adoção de procedimentos e certificações ambientais por empresas, de modo a conferir uma coloração mais verde para suas agendas marrons (Leite Lopes et al., 2004; Leite Lopes, 2006).
Essa polissemia dos sentidos do meio ambiente mostra as traduções de anteriores questões transformadas em questões ambientais que podem, inclusive, se tornar genéricas e pasteurizar os interesses dos diferentes atores envolvidos e suas relações de poder, “transformando o que era conflito em negociação e parceria, e reduzindo o problema daqueles diretamente interessados” (Leite Lopes et al., 2004, p. 231). O meio ambiente se torna um novo centro de controvérsias que emerge pela tensão entre atores e suas formas de habitação do território, em particular, transitando entre sua alteração ou preservação.
Corroboramos essa perspectiva em face do crescente enfraquecimento do poder da vinculação ambiental nos conflitos ou problemas sociais, diante da apropriação do “sustentável” e do “ecológico” por inúmeros atores sociais, na tradução desta leitura por práticas e interesses diversos e, inclusive, contraditórios. Nesta leitura, atribuir problemas urbanos ou territoriais à linguagem socioambiental não seria mais suficiente para obter atenção pública ou poder político, mesmo em contextos de democracia política, havendo uma naturalização social de problemáticas que se complexificam na era das mudanças climáticas. A noção “ambiental” em várias circunstâncias passa a ser uma “moda” generalizada, como solução retórica em um mundo de agudas desigualdades e múltiplas crises.
Ainda assim, olhar detidamente como os atores articulam, expressam e exercitam o “ambiental” em situações de conflito pode ser revelador das sensibilidades incorporadas, trazendo novas luzes práticas e analíticas sobre os crescentes e cumulativos problemas socioambientais entre as escalas locais e globais, bem como seus possíveis porvires. Assim, retomamos a noção de ambientalização nos sentidos até aqui visitados, quais sejam: uma questão pública amplamente debatida e disputada; um novo fenômeno expressado nos léxicos, linguagens, apropriações discursivas e na incorporação de termos técnicos por atores diversos; nas estratégias de ação e interiorização de práticas e preocupações ambientais; nas formas de institucionalização; na influência dos especialistas e pelo encontro entre lutas locais com os conflitos ambientais.
Nos casos estudados pelas lentes da sociologia, a ambientalização foi impulsionada pelo encontro entre posições sociais distintas e, muitas vezes, desiguais, como gestores, especialistas e populações locais. Isso gera tensões diante de normativas externas e a apropriação de novos enquadramentos cognitivos que impulsionaram mobilizações e dinâmicas locais em várias direções, a depender de cada caso.
A compreensão destas ambientalizações pode ser aprofundada com a perspectiva da sociologia pragmática ao se analisar conjuntamente as materialidades, as situações de ação, as formas de valorações que as pessoas conferem ao meio ambiente e as afetividades articuladas entre humanos e não humanos. O peso dado a estes fatores não está necessariamente presente nas pesquisas que utilizam a noção, sem aprofundá-lo, generalizando o termo ambientalização como um “rótulo” que se aplica, muitas vezes ante as novas vinculações do “ambiental” pelo poder público ou pelas instituições. Nesse sentido, esperamos que a articulação da perspectiva pragmática possa contribuir na forma analítica ao que pode ser denominado de ambientalização, conferindo maior materialidade e objetividade às múltiplas faces deste conceito, alargando-o.
Sociologia pragmática: a compreensão dos problemas ambientais desde as situações e suas consequências
A sociologia pragmática articula elementos do interacionismo, das teorias da ação situada, da etnometodologia e da tradição americana da filosofia pragmática,[1] desenvolvida desde múltiplas abordagens e por diversos autores franceses, entre outros, desde meados dos anos 1980, como Luc Boltanski, Laurent Thévenot, Bruno Latour, Michel Callon, Éve Chiapello, Daniel Cefaï e Francis Chateauraynaud (Barthe et al., 2016). Esses autores evidenciam limitações e lacunas da produção da sociologia crítica e estruturalista, sem trabalhar a partir de categorias explicativas dadas, mas entender sua própria formação desde a experiência dos atores (Corrêa; Dias, 2016). Todos esses autores não têm unanimidade em suas perspectivas teóricas sobre a sociologia pragmática, no entanto, existe algum grau de coerência entre eles, em particular no enfoque da sociologia dos problemas públicos (Cefaï, 2017) ou na análise das redes, situações e justificações (Chateauraynaud, 2023).
Esta perspectiva trabalha com base em quadros de interpretação, a partir dos quais é possível descrever e entender as atividades práticas, suas situações e as performances dos atores envolvidos. “As formas de experiência, de opiniões e de ação pública não cessam de se instituir”, sendo que “crenças compartilhadas e a aquisição de costumes convergentes resultam da sedimentação histórica e de um processo contínuo de experimentação”, e “são controladas por uma pluralidade de regimes de compromisso em situações (Cefaï, 2012, p. 4-5, tradução nossa; Cefaï, 2011). Atenta-se em especial para situações públicas, numa perspectiva histórica, material e social empiricamente fundada, de modo que a realidade é compreendida por saberes objetivamente produzidos. A situação ou os sentidos das ações constituem o material a ser investigado (no presente ou no passado), no sentido de entender heranças e apropriações que podem suscitar novas questões (Barthe et al., 2016).
Os momentos de incerteza e de controvérsias são vistos como oportunidades de pesquisa, de forma que sejam compreendidos momentos críticos e suas situações de prova, ou seja, uma interferência ou ruptura inesperada que produz uma indeterminação e desencadeia um conjunto de ações e mobilizações, que procuram obter legitimidade (Corrêa; Dias, 2016).
Nas pesquisas com esta abordagem a relação entre a micro e a macrossociologia se direciona para os “lugares ou atividades nos quais conjuntos se agregam e totalidades se reúnem, coletivos são instituídos e estruturas se tornam tangíveis” (Barthe et al., 2016, p. 88), de modo que o macro é compreendido e se concretiza pelas situações, práticas, dispositivos e instituições.
Essa análise micro-macro pode ser aplicada, por exemplo, no estudo do avanço das dinâmicas de verticalização urbana, na hipótese da tendência brasileira para a maximização do capital e sua apropriação dos territórios por meio da construção de edificações com mais andares. Os conflitos desse processo podem ser captados nas alterações em leis urbanísticas municipais, em seus debates públicos, em particular nas formas argumentativas, justificativas, valorações e materialidades acionadas pelos atores, entre gestores públicos, moradores, comunidades tradicionais e profissionais da área imobiliária, que acionam múltiplos repertórios ambientais para defesa dos seus interesses. Essa, então, poderia ser uma ambientalização captada diante de uma disputa por um problema público, no caso, o uso do solo no âmbito local, espelhando uma tendência mais ampla no âmbito nacional.
Na sociologia pragmática a investigação pode acompanhar a formação e o estabelecimento das arenas públicas, ou seja, as atividades práticas em situação, não restritas a espaços institucionais ou estatais, mas na constituição de públicos ao redor de um problema socialmente reconhecido. O estudo pelas arenas públicas busca entender como as formas de experiência, opinião e ação pública se instituem, especificamente nas performances dos atores, suas provas e no manejo de seus problemas, delimitação de culpados e de responsáveis, oposto a um modelo abstrato ou ideal, mas ancorado na sua fundação empírica (Cefaï, 2002).
Os problemas públicos, imersos em arenas públicas, se consolidam como assunto que procura ser comunicado e que requer atenção pública, diante de situações entendidas como problemáticas e que decorrem de decisões políticas. Nas investigações sobre temas socioambientais pode-se levantar os “múltiplos lugares e momentos em que o meio ambiente se transforma em uma coisa pública”, o que envolve perceber a existência das dinâmicas organizativas e seus bastidores em torno do problema em análise, bem como quais lógicas de associação são acionadas (Cefaï, 2011, p. 161; Cefaï, 2002; Cefaï; Veiga; Mota, 2011). Retomando nosso exemplo, um problema público pode ser lido nos conflitos do acesso e uso da terra em determinada localidade e suas interfaces diante das mudanças urbanas e em suas legislações, ou ainda, em outros exemplos, como em casos da contaminação por agrotóxicos em determinada população, nas mobilizações e dinâmicas socioterritoriais diante de megaprojetos.
Nesta perspectiva não se opõe atividades práticas a atividades reflexivas, de forma que a pesquisa “se dedica a descrever as razões de agir dos atores e o faz unicamente através do que as torna observáveis em situação concreta”, para compreender as razões e reflexividades desde a materialidade e na observação das ações (Barthe et al., 2016, p. 100).
Assim, pode-se identificar os quadros de interpretação acionados pelos atores, percebendo “as configurações públicas práticas e discursivas que introduzem a ordem pública na cena e no relato”. E ainda, captar as gramáticas da vida pública, “maneiras de assinalar e resolver problemas, explicitar motivos e atribuir responsabilidades” em problemas ambientais, por exemplo (Cefaï; Trom, 2008, p. 32, tradução nossa). Isso pode mobilizar problemas públicos, ações coletivas, redes sociais e se traduzir em dispositivos legais de políticas públicas, o que confere à pesquisa a atenção às consequências dos processos investigados.
No caso da pesquisa realizada por Leite Lopes et al. (2004), a investigação da construção do problema público da poluição ambiental acompanhou seu curso de ação em seus desdobramentos mobilizadores e nas esferas institucionais.
Um grupo profissional, como os pescadores do município de Itaguaí, constrói suas concepções ambientais a partir de sua prática da pesca e do contato com o mar [sendo afetados pela poluição na sua prática] [...] tinham, além do conhecimento empírico do mar através da pesca, um discurso “ecológico” produzido por um processo de apropriação e tradução de conhecimento adquirido no contato com agentes intermediários [especialistas] (Leite Lopes et al., 2004, p. 230).
Nesta investigação, a presença da poluição por si só não gerou consequências mobilizadoras, havendo uma tendência à sua naturalização. O problema vivido precisou tornar-se uma questão social que articulasse um interesse social maior, desnaturalizando o problema, rejeitando-o, para então, buscar a alteração do cenário. Houve eventos desencadeadores e transformadores daquelas realidades, bem como a presença e a intervenção de agentes extralocais, como profissionais da saúde do trabalho e ambientalistas, para reinterpretar os sentidos e as práticas ante a poluição. Ou seja, o ambiente emergiu como um efeito de práticas, objetos, atos e palavras que lhe deram concretude (Lascoumes, 1994).
A perspectiva pragmática permite explorar as formas de engajamento público e institucional dos atores, observando de forma mais apurada quais os constrangimentos locais e como eles operam, expondo as especificidades das formas de coerção, ou do exercício e justificação do poder (Corrêa; Dias, 2016, p. 89).
Assim, orientada por uma visão pluralista, recusa-se a ideia de que os atores sigam determinismos egoístas, autônomos, constantes e racionais, ou mesmo um conjunto claramente definido de valores morais, atuando como exemplo de bons e íntegros cidadãos. Suas ações não são, também, determinadas, rigidamente, pelas estruturas sociais, refletindo uma unidade de intenções. Nesta perspectiva, os atores são pragmáticos e se constituem no curso de sua própria ação, mobilizando concepções e experiências disponíveis para a resolução de situações problemáticas em que estão implicados.
Cada ator se acomoda a redes em cadeias humanas e não humanas, produzindo economias cognitivas e afetivas, que transportam estoques de memórias sedimentadas e linguagens de descrição, qualificação e avaliação, comprometidos em dispositivos híbridos, indissociavelmente científico e jurídico, técnico e político, que transformam os tempos de sua ação e seu julgamento (Cefaï, 2012, p. 24, tradução nossa).
Neste aspecto, os interesses dos atores são entendidos como produtos da ação e não como seu fator explicativo, ou seja, os interesses se tornam um “objeto de pesquisa em si, do qual o/a pesquisador/a deve compreender a definição, a estabilização e a transformação nas controvérsias, polêmicas e outras provas que ele decide estudar”, em meio a polêmicas públicas e na “revelação de interesses” (Callon, 1986; Bidet, 2008; Boltanski, 1984 apud Barthe et al. 2016, p. 96). Quanto ao último caso, é comum nas disputas dos movimentos sociais o uso de argumentos sobre “interesses ocultos” para desqualificar adversários, distanciando-se deles, e, de outro lado, na explicitação dos interesses defendidos ou daquilo que seria de interesse mais geral, cabendo à pesquisa compreender a forma de construção destes interesses. Nesse sentido, é possível compreender a intrínseca relação entre fatos e valores na análise da prática e das classificações dos atores (Corrêa; Dias, 2016).
Compreende-se que os atores podem alterar sua relação de interesses de acordo com o contexto e a posição em que estão imersos, já que os “atores estão repartidos em vários mundos, que se compõem entre si e entre os quais mudam de um a outro”. Os “atores são seres afetivos, morais e políticos” que se ajustam às situações e na gestão de suas interações (Cefaï, 2012, p. 25, tradução nossa). Assim, os atores podem ter comportamentos diferentes e até contraditórios se estiverem em contextos distintos, por exemplo, um pescador, uma moradora aposentada e um profissional que atua na venda de novos imóveis não terão, necessariamente, a mesma perspectiva, ação e interesse sobre o uso do solo de um município. O primeiro pode expressar sua compreensão sobre o uso do solo desde a pressão pela melhoria das condições de balneabilidade e saneamento para atuar com a pesca de forma saudável, a segunda pode apontar problemas no trânsito e na poluição que cotidianamente convive no município e o terceiro pode apoiar legislações favoráveis ao aumento das edificações, ao contrário dos dois primeiros, em face do seu trabalho como fonte de sobrevivência. Neste caso, tem-se o embate entre formas distintas de engajamentos, de uma visão comum sobre o ambiente coletivo versus uma visão que expressa a aliança entre elites políticas e econômicas para o crescimento urbano. Essas posições podem acionar múltiplos repertórios de ambientalização, captados e analisados pela pesquisa de diferentes maneiras, de acordo com o contexto e a posição de cada ator. A análise não busca indicar uma forma de ambientalização melhor que outra, mas compreender como ocorrem essas múltiplas dinâmicas de ambientalização, seus significados, suas contradições e quais seus desdobramentos possíveis.
Retomando os estudos de Leite Lopes et al. (2004), percebeu-se, por exemplo, mudanças nas relações no que se refere à poluição nuclear em Angra. Se foi inicialmente combativa em razão do medo da poluição radioativa, depois foi mais negociada, com a presença de um conselho e de governos conciliadores, agindo com compensações financeiras. Ou seja, da rejeição passou-se a renaturalização em virtude do contexto de crise socioeconômica da época.
Tal situação requer que a pesquisa analise os atores e suas construções simbólicas e materiais a partir da experiência vivida, de perto, no manejo de suas situações, acessando provas da realidade. Os atores são os “operadores da conexão entre seus contextos de experiência e de ação” (Cefaï, 2012, p. 27, tradução nossa). Ou seja, um mesmo ator pode acessar diferentes tipos de agência, como capacidade de agir sustentada por modos distintos de envolvimento com o ambiente (Centemeri, 2015).
Para citar outro exemplo da coexistência de diferentes visões e crenças relacionadas aos problemas ambientais e seus efeitos sobre os corpos, as quais podem ser acionadas, inclusive, por um mesmo indivíduo, recorremos à pesquisa etnográfica na Villa Inflamable, em Buenos Aires, realizada pelos argentinos Javier Auyero e Débora Swistun (Auyero; Swistun, 2007). Naquela localidade popular, os moradores foram expostos a contaminações por um polo petroquímico, e a investigação dos autores, sobre como as pessoas compreendiam a contaminação, levantou múltiplas perspectivas. Por exemplo, havia pessoas que entendiam a extensão da contaminação, mas a localizavam erroneamente, ou mesmo, sabiam que o polo afetava a qualidade do ambiente, mas se equivocavam no que diz respeito aos agentes responsáveis pela contaminação. Havia, ainda, pessoas que trabalhavam no polo e moravam em áreas circunvizinhas, mas afirmavam que essas áreas eram seguras no que tange às contaminações, argumentando que seu próprio corpo era saudável.
Nesse sentido, o estudo mostrou que se o conhecimento prático é acionado como compreensão [ou não] da contaminação ambiental, ele não é suficiente, tampouco absoluto, diante de indefinições acerca das fontes, da localização e dos efeitos da contaminação, com visões polarizadas e divididas entre o que fazia ou não fazia mal, até onde, como e por quem.
Como mostrou a pesquisa, “a exposição crônica aos contaminantes gera confusão e incerteza generalizada entre os habitantes de Villa Inflamable” (Auyero; Swistun, 2007, p. 149, tradução nossa). Os autores perceberam uma produção social da confusão de forma contextualizada, mesmo com elevados níveis de chumbo no sangue das crianças, níveis de poluição do ar que faziam com que as pessoas fechassem suas janelas e contaminação das águas, os habitantes do lugar se permitiam duvidar e negar a contaminação, acionando diferentes justificativas. A pesquisa levantou que essa confusão se ampliava em função dos discursos e das posturas contraditórias dos agentes estatais e dos representantes da empresa Shell, responsável pela contaminação. O “não saber” aparecia, neste caso, como forma de dominação e como parte das dimensões do sofrimento vivenciadas por aquela população. Isso também se materializava na falta de acesso a testes sobre os níveis de contaminação nos corpos dos moradores, sem comprovar tecnicamente a contaminação.
A exemplo desta investigação, a análise do discurso dos atores requer compreender não apenas sua oralidade como críticas e justificativas, mas perceber o discurso em relação ao seu fundamento prático e seus efeitos sociais, os quais, em vários momentos, podem carregar lógicas contraditórias dos próprios atores e deles com seus contextos. Dessa maneira, pode-se compreender a delimitação das estratégias, ou seja, “como os atores o fazem, com que tipo de prova e de auxílios materiais e com que êxito desigual [...] [de modo a] investigar os fundamentos práticos das operações de crítica e justificação realizadas e/ou seus efeitos sociais” (Barthe et al., 2016, p. 99). Por esta leitura, entender as incorporações ambientais passa por acionar as associações que os atores fazem daquilo que vivenciam.
Entender os sentidos da ambientalização no caso de Villa Inflamable mostra, assim como nos estudos de Leite Lopes et al. (2004), que a ocorrência física dos problemas socioambientais não é suficiente para a compreensão crítica ou mobilização dos atingidos pela contaminação, para poder pautá-la como uma ambientalização do conflito social. A negação do problema decorreu da manipulação pelo poder político e econômico local, o que pode ter se acentuado pela ausência de especialistas externos na área ambiental e de antecedentes organizativos e de movimentos sociais relativos aos atingidos. A “antiambientalização”, neste caso, mostra como determinadas interações entre poderes desiguais tornam possível duvidar socialmente daquilo que se vivencia materialmente. Além disso, a não apropriação política do problema resultou na inexistência de dinâmicas que vinculassem as categorias ambientais com os atingidos, sem ampliar o conflito vivido com seus causadores (Leite Lopes et al., 2004).
Nesse exemplo, a análise da articulação entre prática e reflexividade dos atores traz à tona não apenas falas públicas, mas ações e falas fora do público, rotineiras, assim como seus aspectos sutis como olhares, hesitações e movimentos do corpo. Por exemplo, ao acompanhar uma audiência pública, pode-se perceber a intensidade das palmas, o direcionamento de falas, dedos e olhares, o agrupamento espacial dos presentes. E ainda, as rotinas e vinculações dos atores em outros espaços sociais, aproximando-se dos estudos etnográficos.
Ao contrário de deduzir a ação desde as disposições atribuídas aos atores, a sociologia pragmática acompanha como eles se envolvem material e corporalmente nos seus mecanismos práticos de ação, que podem permitir aprendizagens e aquisição de saberes. Assim, a pesquisa acompanha como os atores “se envolvem corporalmente nos dispositivos materiais que eles consideram, ou que precisam dominar”, o que se reflete da pesquisa “não prejulgar as competências dos atores”, assim como suas relações de poder como predeterminadas (Barthe et al., 2016, p. 105-106). A pesquisa compreende as dinâmicas e adaptações dos atores em cada contexto, desde a descrição das situações e das provas. No caso das relações de poder e suas assimetrias ou simetrias, elas são entendidas como resultado do que é observado, percebendo-se seus efeitos, não como uma causa anterior. Busca-se compreender e explicar como as igualdades e desigualdades se (re)produzem ou não.
Além disso, a leitura da sociologia pragmática aponta que coisas e pessoas estão sujeitas a diversas ordens plurais de valor que procuram conferir alguma coerência à vida social, ou seja, diferentes ordens morais articulam-se com diversas formas cognitivas e avaliativas. As percepções que as pessoas têm acerca das relações com o ambiente são atravessadas, portanto, pela existência de múltiplas normatividades e suas justificativas.
Estas ordens [podem ser] as seguintes: valor “doméstico”, avaliado na perspectiva da tradição ancorada; o valor da 'fama', entendida como visibilidade na opinião pública; valor de “mercado”, determinado pela concorrência; valor ‘industrial’, entendido como eficiência técnica; valor “cívico”, relativo ao interesse geral e à solidariedade igualitária; o valor da 'inspiração', conforme figurado pela ruptura ou diferença criativa. Este modelo de ordens plurais de “valor” não se refere a um indivíduo que escolhe “molduras” ou outras “ferramentas” cognitivas a serem utilizadas oportunamente dadas as circunstâncias (Thévenot, 2007, p. 410, tradução nossa).
Nessa leitura, compreende-se a ação desde seus engajamentos ambientais, quando os atores compartilham [ou não] os mesmos julgamentos avaliativos, diante de uma pluralidade de modos de engajamento e avaliação ambiental. Uma das linhas investigativas pode contrastar as diversas concepções de justiça e seus limites práticos. Ou ainda, compreender como um ambiente qualificado pode se colocar como um bem comum legítimo, presente em experiências coletivas na construção de dimensões públicas do ambiente (Centemeri, 2015; Corrêa; Dias, 2016). Isto é, as questões ambientais e seus ativismos são amplos e diversos, emergindo em diferentes formatos no domínio público, sendo que o esforço dos atores em legitimar seus problemas privados em problemas públicos passa pela explicitação das dependências materiais das pessoas e pela busca da legitimação dos incômodos nas esferas públicas (Centemeri, 2022, 2018).
Centemeri (2022) destaca o aspecto material e afetivo das argumentações e situações problemáticas colocadas nas disputas socioambientais que, além das dimensões moral e cognitiva, servem como testes de realidade e legitimidade para as argumentações e embates no confronto público. Ou seja, na pesquisa pode-se compreender de que forma se entrelaçam seres humanos e ambientes, buscando uma “granularidade descritiva”, isto é, como “as pessoas defendem concretamente seus vínculos pessoais (com lugares, humanos e não humanos) como valor legítimo que deve ser levado em consideração na tomada de decisões públicas” (Centemeri, 2022, p. 13, tradução nossa).
Nesta linha da sociologia pragmática a ação produz uma materialidade, uma espacialidade e uma ecologia, de forma que engajamentos ecológicos podem explicitar apegos e afinidades com monumentos, figuras históricas, espaços urbanos, entre outros. Entender os valores atribuídos ao meio ambiente revela, então, as construções de causas ambientais como problemas públicos, cabendo à pesquisa compreender os arranjos e as mediações que geram as mobilizações ambientais, bem como as múltiplas formas que “seres humanos dependem do seu ambiente, dão sentido a essas dependências e reconhecem a sua importância” (Centemeri, 2022, p. 16, tradução nossa).
Essa análise das materialidades se imbrica com as abordagens da ecologia humana, em especial aquelas que situam as pessoas e suas configurações espaciais para entender como o espaço urbano se forma como uma “comunidade de vida”. Examina-se como os espaços influem nas dinâmicas sociais e vice-versa, o que resulta que toda mobilização é espacializada, captada na descrição das formas físicas, dos fluxos urbanos e seus efeitos nos modos de habitar. Pessoas e ambientes não são dados como independentes, mas compreendidos em suas transações e dinâmicas de ação e reação (Almaric, 2023; Mey; Günther, 2015; Orillard, 2014; Quéré, 2024).
A perspectiva analítica de compreender o valor dado ao ambiente e articular suas materialidades esteve presente no estudo de um conjunto de manifestações dos denominados “Coletes Amarelos” ou Gilets Jaunes (GJ), iniciadas no final de 2018, na França, motivadas contra o aumento na taxa de combustíveis (Levain et al., 2023). A pesquisa foi realizada por um amplo conjunto de instituições e pesquisadores franceses para acompanhar esse processo de mobilização.
O nome que deu origem à mobilização decorreu do uso de coletes amarelos pela maioria dos manifestantes, os quais também fizeram ocupações em espaços públicos, como praças e rotatórias. Percebeu-se que as características deste movimento tinham concepções e engajamentos ecológicos representativos da população francesa em geral, por exemplo, ao posicionar o poder de compra, as injustiças e a pobreza como mais importantes que a questão ambiental e climática, apesar de não negar sua existência e origem humana. No entanto, os GJ se distanciavam da ecologia institucional, dos partidos verdes e das organizações públicas. Longe de demarcar aquelas mobilizações como “antiecologistas”, como fizeram ONGs ambientais na época, as pesquisas sobre o caso puderam descortinar algumas perspectivas neste tema, diante de uma manifestação que alargou o campo das contestações.
O principal argumento dos GJ era que uma maior taxação recaía sobre as classes médias e populares, as quais não detinham recursos financeiros para sustentar modos de vida mais ecológicos. Por outro lado, a política de taxar os combustíveis era considerada pelos poderes públicos como de viés ecologista.
Os levantamentos perceberam que a mobilização não partiu de uma reinvindicação “antiecológica”, mas sim em virtude da forma como o problema ambiental era tratado pelos poderes institucionais, “acusados de usar a tributação ecológica como uma manobra para atender outros interesses e objetivos”, enquanto “os grandes poluidores não eram afetados” (Levain et al., 2023, p. 52, tradução nossa). Além disso, o perfil dos mobilizados era semelhante à população francesa em geral, visto que “os mais preocupados com as questões ambientais eram os mais jovens, os mais instruídos, os mais politizados e os mais de esquerda” (Levain et al., 2023, p. 52, tradução nossa). A principal motivação da mobilização girava em torno do poder de compra e das condições de vida da população, mas houve uma politização crescente das preocupações ambientais diante das críticas que o movimento recebia como “antiecológico”, bem como a mobilização simultânea da Marcha pelo Clima, entre 2018 e 2020, que gerou lemas articulados como “fim do mundo, fim do mês: mesmo combate” (Levain et al., 2023, p. 57, tradução nossa).
Naquele período houve diversos reforços entre os movimentos dos GJ e dos ambientalistas no âmbito local, de modo que os protestos ambientais foram ampliados desde a ligação entre justiça social e justiça ambiental. Apreendeu-se que “uma abordagem à ecologia com foco em experiências e práticas diárias, em vez do apoio declarado para a proteção ambiental, pareceu ser mais relevante para compreender a relação dos GJ com a ecologia” (Levain et al., 2023, p. 59, tradução nossa). Isso mostra os desafios na articulação entre as pautas ambientais, da saúde e do trabalho, bem como de compreender porque as classes trabalhadoras se articulam ou não nestas pautas, considerando ainda a presença de discursos moralistas na mudança de práticas de consumo, por exemplo.
De modo mais específico, a pesquisa apontou que compreender os “movimentos sociais contemporâneos que resistem às políticas climáticas depende de uma abordagem holística e pragmática que relacione a subsistência material, a justificação e a procura de autonomia” (Levain et al., 2023, p. 60, tradução nossa), ou seja, o ambiental passa por se articular com outras demandas cotidianas que efetivamente atravessem a vida das pessoas, sem que seu tratamento seja atomizado ou abstrato. A aproximação com o ecologismo não decorreria de uma motivação explícita com os valores ambientais ou com os rótulos de “ecocidadãos”, mas de uma aproximação com um “ecologismo das classes populares” por reinterpretarem o significado do ambientalismo, a exemplo de práticas como priorizar a compra de produtos locais, utilizar recursos com parcimônia, construir espaços de convivência inclusivos e compartilhar alimentos.
Nesse caso, a ambientalização do conflito social, iniciada a partir das dificuldades na reprodução da vida, teve contato com novos atores, críticas e mobilizações, alargando o que então se entendia por lutas ambientais, não restritas a diretrizes estatais ou institucionais, de modo que novos léxicos e enquadramentos de práticas e problemas foram incorporados pelos atores a suas reivindicações.
A perspectiva adotada na pesquisa do GJ dialoga com a visão pragmática de Chateauraynaud (2022) ao desenvolver uma “sociologia pragmática das transformações” que também descreve e analisa processos de controvérsia e mobilização em suas experiências e ambientes concretos. Para o autor, isso se daria desde abordagens críticas entre as atividades e seus jogos de poder que não se limitam aos discursos, mas que também são captados desde a descrição de incidentes e microfenômenos. Por esta leitura, entender como as pessoas associam a questão ambiental a disputas por recursos, por exemplo, ao preço dos combustíveis, ao uso da terra, ou de que forma ocorrem as recentes mobilizações pelo clima, implica perceber as causas e características destes problemas, assim como suas interações entre escalas sociais, temporais e espaciais. A análise inclui não apenas a territorialidade local, mas integra uma compreensão ampliada dos processos sociais e disputas políticas, ao mesmo tempo que conecta os atores a seus ambientes no curso dos seus acontecimentos e compreensões.
Chateauraynaud (2022) traz a atenção sobre os efeitos sociais do que é investigado, o que se reflete na forma de conduzir a pesquisa. Não se busca somente compreender as características e propriedades dos processos do problema de pesquisa, mas também estar atento às suas consequências, incluindo-as nas suas análises e descrições dos futuros que estão no porvir. Isto é, “olhar com lucidez para os tempos atuais, os dramas, as desregulamentações e as catástrofes que aí se desenrolam, ou que aí se anunciam”, e ainda, “sobre os futuros possíveis que ali são construídos ou desconstruídos”, na busca por levantar aprendizados para o futuro (Chateauraynaud, 2022, p. 37, tradução nossa). Há então uma implicação explícita da pesquisa com aquilo que é pesquisado, que se qualifica na densidade das análises.
Por esta vertente não se almeja confirmar teorias, propriedades sociais conhecidas ou limitar-se ao mapeamento de atores e temas, antes, atenta-se às complexidades, às formas de incerteza e às produções de sentido nas narrativas, na análise da interação dos atores e nas cenas da ação pública. Tal abordagem pode desdobrar as múltiplas esferas de ação, sem limitar a perspectiva da sociologia pragmática ao aspecto fenomenológico e, da mesma forma, também não se definindo como perspectiva relativista ou neutra em suas investigações.
Neste último aspecto pensamos com o autor: “até que ponto um processo crítico permite gerar ou renovar abordagens individuais e coletivas? A abertura de uma polêmica ou de uma crise permite rever os suportes da crítica e transformar o campo de possibilidades?” (Chateauraynaud, 2022, p. 74, tradução nossa). A partir destas reflexões, diante da ambientalização de conflitos, quais consequências e indicações de futuro se sinalizam [ou não se sinalizam] nas distintas apropriações e valorizações ambientais?
O autor também enquadra as tensões e os limites no caminho da investigação em três elementos metodológicos concretos, a saber: i. o “grau de explicabilidade” obtido pela pesquisa; ii. a “acessibilidade aos fenômenos” e objetos investigados; e iii. o “compromisso” em considerar as versões dos diferentes atores envolvidos diante do problema em análise. Aponta ainda um desafio comum no processo de fazer a pesquisa, que é o de fazer escolhas perante as múltiplas possibilidades de problemas de pesquisa e dos assuntos encontrados nas atividades de campo, o que pode gerar a necessidade de reformular as perguntas iniciais. Por esta análise, a investigação é entendida como um problema e é trabalhada como processo que busca compreender as suas camadas (Chateauraynaud, 2022).
Além dessas indicações metodológicas, a perspectiva pragmática pode ser resumida em uma proposta indicativa de seus possíveis processos críticos de pesquisa, distribuídos em seis níveis, quais sejam: i. atividades situadas e comuns, a agência humana capturada em seus meios e micromundos, com atenção às suas margens; ii. o surgimento de alertas e controvérsias, na constituição de problemas e de públicos, acompanhados pela trajetória que tomam, em especial de coletivos e instituições; iii. a evolução das configurações discursivas e dos regimes de enunciação em diferentes escalas espaciais, temporais e sociais, a exemplo dos processos de ambientalização; iv. a linha de rupturas, em agências humanas e não humanas, na qual as catástrofes e os conflitos, as mudanças e os choques terão impacto sobre as outras linhas; v. mudanças de fase ou de regime baseados em suas próprias formas de totalização, a partir da lógica das redes; vi. formas de poder e controle, o que pode se refletir em todos os outros níveis analisados anteriormente (Chateauraynaud, 2022, p. 55, tradução nossa).[2]
De outro modo, Barthe et al. (2016) também auxiliam com uma síntese metodológica para as pesquisas sociológicas de viés pragmático, ampliando a crítica para além do que dizem os próprios atores investigados, a saber: i. inicia-se a investigação por descrever minuciosamente o que dizem e fazem os atores em situações concretas, suas provas e apoios materiais e organizacionais, de forma a explicitar e explicar aquilo que se problematiza; ii. analisa-se as consequências do que foi descrito desde as competências dos atores e os seus dispositivos materiais e organizacionais, como seus estímulos, contradições e obstruções; iii. pode-se ainda levantar os aspectos-chave que, se modificados, poderiam aumentar ou diminuir os efeitos e os problemas observados, como uma categorização do que se analisa.
A síntese anterior se desdobra em três consequências para o alcance crítico desta sociologia, retomando aspectos da sociologia clássica americana e francesa, a saber: i. que o poder intelectual da crítica não é um monopólio e não está centralizado nos intelectuais, já que se partiu das compreensões reflexivas e ativas obtidas em campo; ii. que a crítica sociológica pode e deve desenvolver um confronto público para além do que dizem os atores pesquisados; iii. que a sociedade pode assumir suas consequências práticas, de forma a sugerir “mudanças materiais e organizacionais que tornem os dispositivos mais aptos a auxiliar os atores a desenvolverem eles mesmos sua crítica e a manifestarem as contradições que [eles] precisam administrar na prática” (Barthe et al., 2016, p. 118).
Na busca de alguma síntese esquemática possível e como uma tentativa de sistematizar a leitura analítica de um processo de ambientalização com o viés da sociologia pragmática, esboçamos o Quadro 1, no sentido de auxiliar futuros estudos no campo socioambiental. Nesta inicial aproximação, a ambientalização é compreendida como um fluxo contínuo desde sua emergência até novas situações que reativam estas emergências.
Figura 1 – Esboço do ciclo do processo de ambientalização
Fonte: A autora, inspirada em Lopes (2006) e Chateauraynaud (2011, 2022).
Por fim, sublinhamos também possíveis cuidados ou talvez particularidades da presente abordagem, especialmente em dois sentidos. Um é perceber que as categorias analíticas e teóricas são elaboradas em determinados contextos e realidades concretas, nem sempre diretamente transponíveis a outras situações, em especial na relação norte-sul global. Isso implica visualizar as limitações das perspectivas teóricas para cada investigação e acessar outras ferramentas sociológicas, se necessário. No presente caso, trazemos duas concepções oriundas de contextos distintos, Brasil e França, e com elas estabelecemos diálogos, mas que, destacamos, são passíveis de limitações. Outro cuidado, desdobrado do anterior, é com a noção de público. No Brasil os problemas públicos não se restringem aos espaços democráticos e participativos de poder e decisão, mas são negociados também em âmbitos particulares e privados, geralmente de modo a garantir a reprodução de dinâmicas desiguais de poder, em especial de raça e gênero.
Considerações finais sobre a articulação entre a sociologia pragmática e a ambientalização
A sociologia pragmática aqui apresentada retoma orientações da sociologia que não são necessariamente novas ou exatamente inovadoras. Ela articula elementos analíticos para um tempo de crescentes bifurcações, ou seja, para situações que desafiam a capacidade do conhecimento até então estabelecida. Ajuda a compreender e teorizar sobre tais dinâmicas, em seus choques físicos e morais, fazendo emergir novas dinâmicas públicas de organização. Isso se dá, por exemplo, no acirramento das tensões globais perante as mudanças climáticas e na ascensão global da extrema direita, em que emergem novas rupturas e novas estabilidades (Chateauraynaud, 2022).
A abordagem pragmática da ambientalização pode então permitir: i. analisar de que forma ocorrem as rupturas nos novos léxicos, entendimentos e ações ambientais; ii. identificar quais concepções e práticas ambientais se revelam; e, iii. saber como se relacionam e se posicionam pessoas e objetos nas disputas por legitimação pública e distintas concepções de bem comum (Corrêa; Dias, 2016).
Esta perspectiva também parte das questões básicas da sociologia de compreender o mundo como ele é e, a partir dele, refletir sobre causas, efeitos e possíveis orientações de futuro. Isso não no sentido de reificar ou desqualificar sensos comuns, ou ainda, dar como estáticas as situações de poder em análise. Busca-se compreender os fenômenos em linhas discursivas e materiais, entender seus públicos, conhecimentos e práticas e, então, articular aprendizados e novas reflexões situadas e escalares, comprometidas eticamente com as consequências daquilo que se estuda.
De outro lado, vimos que a noção de ambientalização emergiu em contextos situados em estudos de caso e na construção de espaços participativos pós-redemocratização. Além disso, se orientou por situações vividas, como colocado pela sociologia pragmática, inicialmente em um momento que a pauta ambiental era emergente nas suas concatenações e institucionalidades, na virada do século XX para o XXI. Se o estudo de Leite Lopes et al. (2004) não se nomeou como “pragmático”, compreendeu o ambiental em situações problemáticas e empíricas localizadas, dando luz às dinâmicas de vinculação ambiental que se expandiram nas escalas locais e globais. O estudo também discorreu sobre seus desdobramentos e associou causas e efeitos desde os fatos. O meio ambiente foi compreendido na institucionalização inicial do tema, diante de arenas públicas que ressoavam emergentes conflitos socioambientais.
Na maior parte dos casos aqui estudados utilizando a noção de ambientalização, a incorporação da linguagem ambiental e seus novos enquadramentos locais foram impulsionados a partir de conexões externas, geralmente por especialistas, em contextos democráticos e de abertura às mobilizações. No contexto recente cabe compreender, em novos estudos, se as dinâmicas de ambientalização são gerenciadas também em enquadramentos internos pelos próprios atores locais. Isso, em especial, perante uma maior generalização, tradução e incorporação de práticas e linguagens ambientais, dada a crescente veiculação dos problemas socioambientais e da necessidade de reorientação global das relações sociedade-natureza em face das catástrofes climáticas.
Se a construção da noção de ambientalização teve como propulsora a condição democrática na política, hoje isso se amplia, diante de efeitos climáticos que exigem mudanças não apenas nas narrativas e envolvimentos políticos, mas na compreensão das formas de ação e valoração dos atores no ambiente. Ou seja, a análise pragmática é oportuna ao desenvolver seu entendimento desde os sentidos da ação e os momentos de incerteza dos atores, compreendendo as diversas formas e critérios de como o ambiente é [ou não] acionado como bem comum.
Percebemos que a sociologia pragmática se aproxima dos estudos etnográficos (Cefaï, 2010), ao partir da descrição das situações em ação, e ainda, inclui compromissos em suas provocações, o que também traz contribuições ao estudo das ambientalizações, a saber: i. a crítica articulada ao que dizem e fazem os atores; ii. a busca da compreensão da articulação escalar do problema estudado; iii. a atenção às materialidades, às afetividades e às valorações vinculadas entre humanos e não humanos; iv. a atenção aos contextos e suas possíveis mudanças e conflitos entre ambientes e atores; e por fim, v. aos efeitos sociais e futuros que indicam as situações estudadas.
A noção de ambientalização, articulada com a perspectiva pragmática, auxilia a descrever e qualificar as formas de agir dos atores, percebendo em suas ações como elas constroem interesses, valores e relações de poder. Nesta linha, é possível perceber se há contradições entre contextos, discursos e ações dos atores e situar o curso dos acontecimentos diante de escalas, materialidade, cenários, ambientes e seus efeitos sociais. Nos casos de conflitos sociais, pode-se empreender a leitura das defesas ambientais com base nas dependências materiais e afetivas dos atores com seus ambientes. A compreensão dos processos de ambientalização requer, assim como a sociologia pragmática, partir de quadros não binários para suas investigações, ou seja, sociedade-natureza, humanos-não humanos, pessoas-objetos, razão-emoção, entre outros, de modo a entender como se fazem e se dão estes quadros, como as pessoas compreendem os problemas em que estão imersos e de que forma os classificam.
Dessa forma, a abordagem da ambientalização não se limita ao que pode ser vinculado como “ambiental” pelos atores como significados, mas caracterizar o que efetivamente traduz o ambiental para cada ator em cada contexto. Cabe, assim, considerar não apenas elementos discursivos, mas também materialidades, provas, associações e suas razões de agir. É preciso compreender, ainda, as consequências e formas da vinculação entre humanos e não humanos em cada situação analisada, ou o que se gerou nesses acionamentos. Trata-se de explicar o que e como se ambientaliza ou não se ambientaliza, sem partir de predisposições ou pressupostos das posições sociais dos atores. E, assim, entender como se operam as desigualdades, contradições ou conflitos socioambientais, o que pode ser aprofundado também a partir de perspectivas de gênero, raça e classe nas investigações contextualizadas.
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AGRADECIMENTO
Agradeço às professoras Claudia Job Schmitt, do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio De Janeiro (CPDA/UFRRJ), e Laura Centemeri, da L'École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) pelas orientações que contribuíram nas reflexões do presente texto.
FINANCIAMENTO
Esta pesquisa pôde ser realizada com o apoio da bolsa de estudos no exterior patrocinada pelo programa público brasileiro PDSE/CAPES - Edital 30/2023.
Lígia Scarpa Bensadon Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), com período de doutorado-sanduíche (PDSE/CAPES) na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris, França. Desde 2016 é docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), campus Niterói. E-mail: ligiasb@ufrrj.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/2377524606588944 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6202-6033 |
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 19, 1-26, e025003, jan./dez. 2025 • ISSN 1984-9834
[1] Dentre os da Escola de Chicago, John Dewey, George H. Mead e Robert E. Park (Cefaï, 2017).
[2] Além disso, o autor sinaliza instâncias para compreender as múltiplas esferas da ação e seus desdobramentos, quais sejam: i. o ambiente, que garante a atividade; ii. o dispositivo, que permite a ação e seu direcionamento; iii. a rede, como conexões possíveis entre entidades, ambientes e dispositivos; iv. instituição, que insere quadros, códigos e categorias normativas; e v. eu interior, que permite a união entre as pessoas diante de um determinado tensionamento (Chateauraynaud, 2022, p. 65, tradução nossa).