Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-21, e023004, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834
Entrevista • Série Especial • Acesso aberto
Entrevista com Maria José Teixeira Carneiro
Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes
Interview with Maria José Teixeira Carneiro
Rural studies in perspective: people, knowledge, institutions and networks
A Revista IDeAS tem a satisfação de publicar mais uma entrevista da nossa série especial que tem como objetivo promover o diálogo com pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam aos estudos sobre o mundo rural em suas múltiplas interfaces. Dessa vez, nossa convidada é a Profa. Dra. Maria José Teixeira Carneiro. Maria José Carneiro, também conhecida como Zezé Carneiro ou simplesmente Zezé, é doutora em Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-MN) e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente, integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) como professora titular aposentada. Sua atuação se concentra nos seguintes temas: agricultura familiar; ruralidades; juventude e gênero no meio rural; relações campo-cidade; relações natureza e sociedade; relação entre ciência e política pública nas áreas da conservação da biodiversidade e agricultura familiar. Ao longo da entrevista, Zezé narra suas vivências pessoais e profissionais, traçando os caminhos que a fizeram chegar onde está. Ela também fala sobre sua trajetória no CPDA e conta como as questões sobre gênero foram introduzidas na sua vida e no Programa de Pós-Graduação. ••• IDeAS Journal is pleased to publish another interview from our special series that aims to promote dialogue with researchers who study the rural world in its multiple interfaces. This time, our guest is Prof. Dr. Maria José Teixeira Carneiro. Maria José Carneiro, also known as Zezé Carneiro or simply Zezé, holds a PhD in Social Anthropology from the École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, a Master's degree in Social Anthropology from the Federal University of Rio de Janeiro (PPGAS-MN) and a degree in Social Sciences from the Universidade Federal Fluminense. She is currently a member of the faculty of the Graduate Program of Social Sciences in Development, Agriculture and Society (CPDA) at the Federal Rural University of Rio de Janeiro (UFRRJ) as a retired professor. Her work focuses on the following topics: family farming; ruralities; youth and gender in rural areas; rural-city relations; nature-society relations; the relationship between science and public policy in the areas of biodiversity conservation and family farming. Throughout the interview, Zezé narrates her personal and professional experiences, tracing the paths that have brought her to where she is now. She also talks about her trajectory at CPDA and tells how gender issues were introduced in her life and in the Graduate Program. |
Citação sugerida CARNEIRO, Maria José Teixeira. Entrevista concedida à Revista IDeAS. Série Especial – Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 17, p. 1-21, e023004, jan./dez. 2023. Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0). Data da entrevista: 20 jun. 2022 Publicação: 28 abr. 2023 |
Série Especial
Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes
A Revista IDeAS tem o prazer de apresentar mais uma entrevista da nossa série especial “Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes”. Dessa vez, nossa convidada é a Professora Dra. Maria José Teixeira Carneiro.
Maria José Carneiro, também conhecida como Zezé Carneiro ou simplesmente Zezé, é doutora em Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-MN) e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente, integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) como professora titular aposentada. Sua atuação se concentra nos seguintes temas: agricultura familiar; ruralidades; juventude e gênero no meio rural; relações campo-cidade; relações natureza e sociedade; relação entre ciência e política pública nas áreas da conservação da biodiversidade e agricultura familiar.
Ao longo da entrevista, Zezé narra suas vivências pessoais e profissionais, traçando os caminhos que a fizeram chegar onde está. Ela também fala sobre sua trajetória no CPDA e conta como as questões sobre gênero foram introduzidas na sua vida e no Programa de Pós-Graduação.
Boa leitura!
Entrevista com a Professora Dra. Maria José Teixeira Carneiro.
Entrevista concedida a Sarah Luiza de Souza Moreira. Texto trabalhado por Ana Carolina Gaspar, Sarah Luiza Moreira e Maria José Teixeira Carneiro[1].
IDeAS: Professora Dra. Maria José Teixeira Carneiro.
Zezé: Eu sou mineira, isso é importante, mas eu saí de Minas muito pequenininha, com 3 anos de idade, mas acho que essa raiz mineira é muito fundamental e tem a ver com o fato de eu me interessar pelo tema rural, porque é uma coisa de uma atração pela roça. Lembro que quando era criança, fui passar umas férias na fazenda de uns tios em Minas, eu morava aqui no Rio já, mas tinha um irmão do meu pai que tocava um sítio. Eu tinha 8 ou 9 anos, mas me lembro que fiquei muito tocada. Para mim aquilo era um paraíso, aquela fazenda, aquela casa grande, aquela plantação de café, eu ajudei a plantar café, o cheiro do curral… Enfim, o mato, a roça, aquela paisagem mineira lá da Zona da Mata. Depois voltei quando tinha 12 ou 14 anos. Então há alguma coisa de roça que a minha família tem e que eu herdei, que ficou muito forte em mim (esse desejo) de querer estudar o campo, porque eu queria ficar no campo. Até hoje acho que se eu pudesse iria morar no campo. Tenho até uma casinha que alugo, há 20 anos, em São Pedro da Serra, em Friburgo, onde fiz pesquisas e levei alguns alunos para desenvolver suas pesquisas de mestrado e doutorado. Tenho ido muito pouco, mas não consigo me desfazer dela. Acho que é essa atração afetiva pela roça, por gostar muito de conversar com as pessoas do campo que me fez orientar minhas pesquisas para temas relacionados ao chamado “mundo rural”.
E fui fazer Ciências Sociais, pois queria transformar o mundo. Eu ia fazer Serviço Social, para ser Assistente Social, que é algo mais prático, mas tenho uma irmã mais velha que me convenceu que Serviço Social não era legal (para mim), que era melhor eu fazer Ciências Sociais. Não entendi muito bem os argumentos, mas segui o seu conselho. Então eu fui muito focada, decidi desde cedo que iria fazer Ciências Sociais. Entrei para o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O primeiro ano foi um ano fortíssimo, foi o ano do AI-5, então houve uma repressão muito forte dentro da faculdade. A faculdade de Ciências Sociais funcionava em Botafogo, num casarão na rua Marquês de Olinda que tinha um galpão no fundo onde ficavam as salas de aula. Em plena ditadura, nós éramos muito visados. Tinha uns chamados “assessores pedagógicos” que, na verdade, eram policiais, uns homens fortes que ficavam andando no pátio e mandando a gente dispersar, não podíamos juntar mais de duas pessoas para conversar ao mesmo tempo. Alguns estudantes estavam sendo procurados pela repressão. Então, esses policiais iam levar a ficha de chamada para o professor fazer a chamada na frente deles. Se o aluno procurado estivesse presente, seria preso. Se não respondesse à chamada, levaria falta e acabaria reprovado. Então, foi muito, muito forte em termos de repressão, muito medo, mas muita resistência também. A gente não podia falar certas coisas, estudar certos autores… Os professores, principalmente, viviam sob muita tensão. No ano seguinte, em 1970, o IFCS foi transferido para o largo de São Francisco, onde está até hoje.
Eu frequentei o IFCS por mais um ano, até que passei num concurso para trabalhar na Companhia Telefônica Brasileira (CTB), na área de Recursos Humanos, onde tinha um pessoal de esquerda. A CTB era uma estatal que, obviamente, tinha militares na direção, mas tinha esse “antro de comunista” lá dentro. Trabalhei por dois anos lá e estudava à noite na Universidade Federal Fluminense. Trabalhava de 8h às 17h30, aí saía correndo porque, às 18 horas, eu tinha aula em Niterói, que ia até as 10h da noite. Era bem puxado. Fiz dois anos no IFCS, dois anos na UFF. Em seguida, me formei e logo fui aprovada para o mestrado de Antropologia no Museu Nacional. Quando comecei o mestrado e ganhei minha primeira bolsa, pedi demissão da CTB. Esse dia está no rol dos mais felizes da minha vida. Porque era uma coisa horrorosa, eu ficava “enxugando gelo”, era um trabalho burocrático e não tinha quase nada para fazer. Eu trabalhava no setor de pesquisa em “desenvolvimento de pessoal”, mas imagina o que era isso. Você imagina como é que um milico vai pensar em recursos humanos para operário de telefonia? Era uma coisa que os carasnão tinham na cabeça. A gente até fez uma pesquisa para ver a demanda, mas não tinha uma demanda de capacitação. Era um setor voltado para a capacitação, mas não tinha nenhum interesse em capacitar ninguém. O chamado “treinamento” funcionava mais como prêmio para certos funcionários, normalmente o pessoal da administração, e eram os chefes que decidiam quem ia fazer os cursos. Então, eu ficava a maior parte do tempo estudando escondido, não podia botar um livro em cima da mesa, porque, se o coronel, meu chefe, visse, me dava bronca. Eu colocava o livro dentro de uma gaveta aberta, botava uns papéis sobre a mesa e ficava lendo e fichando a bibliografia do curso. Assim consegui estudar. Esses dois anos de trabalho não me acrescentaram nada, mas foram importantes para o meu sustento e possibilitaram que eu me casasse para poder sair de casa.
IDeAS: O que você estudou na graduação? Quais foram os temas? Quais foram as questões?
Zezé: Na graduação era mais teoria, não tinha um tema. Eu fiz bacharelado. Na UFF não se exigia monografia, na época. Tive muitos bons professores, foi uma formação muito boa tanto na UFF quanto na UFRJ.
Me formei em 1972 e, em 1973, ingressei no mestrado no Museu. Foi um período duro também, ainda sob a ditadura. Eram pouquíssimas vagas, acho que seis ou sete vagas. Passei e consegui uma bolsa que durava quatro anos! Havia poucos cursos de doutorado no Brasil, e o mestrado podia durar até quatro anos, era quase um doutorado de hoje. Para a seleção, o Museu exigia a apresentação de uma pesquisa realizada por você mesma. Você levantava uma questão, fazia a pesquisa, levava os dados sistematizados, em fichas, e escrevia sobre a pesquisa durante o tempo estipulado. Eram quatro horas para descrever e analisar os dados. Eu fiz uma pesquisa sobre sociabilidade no morro do Borel, porque eu morava relativamente próximo e tinha uma diarista que era de lá. Foi ela quem me introduziu na “comunidade” (naquele tempo não se chamava assim, era “morro” ou “favela”). Eram outros tempos, a violência era bem menor, você podia subir o morro, bater na porta e conversar com as pessoas ou observar o que acontece em um botequim, como fiz. Na época, o Machado (Luiz Antonio Machado da Silva) tinha publicado um artigo que ficou muito conhecido: “O significado do botequim”. Era uma etnografia urbana, a sociedade a partir do botequim, alguma coisa sobre a sociabilidade. O Machado era um sociólogo com um viés antropológico muito bom, muito criativo, do IFCS e do Iuperj. Infelizmente ele faleceu em 2020.
Então, a partir desse artigo, eu pensei nessa pesquisa lá no Borel, vendo como eram os botequins, quem frequentava, quem não frequentava, como era a sociabilidade das pessoas, não me lembro muito bem. Fiz essa pesquisa e passei. O Museu foi importantíssimo, tive uma formação muito boa, assim como foi importante a minha na graduação em Ciências Sociais.
IDeAS: Por que a Antropologia?
Zezé: Por que a Antropologia? Eu não conhecia nada de Antropologia, fui conhecer na faculdade. Meu primeiro professor de Antropologia, que se tornou meu amigo, foi o Gilberto Velho. Era um excelente professor, foi ele quem me cativou para a Antropologia. Trabalhei na pesquisa para a dissertação de mestrado dele, “Utopia urbana”, uma pesquisa com os moradores de Copacabana, etnografia pioneira que marcou o início da construção do campo da Antropologia urbana no Brasil. Foi minha primeira experiência em pesquisa etnográfica, ainda que muito curta. O que mais despertou meu interesse para a Antropologia foi o seu método. A riqueza do fazer etnográfico, que leva você a uma imersão prolongada no campo, estabelecer relações de “certa” confiança para apreender os sentidos do social pelos detalhes, pelo que parece desimportante numa visão distanciada, mas sem desprezar os contextos. Como dizia Roberto Da Matta, “entrar na sociedade pela cozinha”.
Assim que eu entrei para o Museu, participei também de uma pesquisa, com o Roberto Da Matta na Amazônia, financiada pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), visando elaborar um perfil socioeconômico dos vales do Xingu e dos Tapajós. Eu fui para o Xingu com o Matta e outra equipe foi para o Tapajós. Foi uma experiência incrível. Isso foi em 1974. A Transamazônica estava em construção. Passamos um mês lá. Essa viagem mudou minha visão de mundo naquela época. Entrevistamos colonos vindos de todo o canto do país, seringueiros, comerciantes, entre outros. Vivenciamos conflitos entre os colonos e os órgãos responsáveis pela gestão dessa “colonização”, causados pelas condições precárias a que estavam submetidos. Muito triste. Fome mesmo. O pessoal ganhava um tipo de cesta básica durante os primeiros seis meses, período em que, supostamente, eles deviam desmatar, plantar e colher para comer. Imagina… e se eles chegassem no período de chuva era ainda mais grave. Passavam seis meses sem que pudessem ter feito nada. Nessa situação eles resolveram invadir o depósito da Cibrazem, que era o órgão responsável pelo abastecimento dos colonos. Não chegaram a invadir, mas se concentraram na porta.
IDeAS: Como foi sua experiência no Museu Nacional?
Zezé: Entrei no Museu em 1973 e concluí a dissertação em 1976, quando também nasceu minha primeira filha.
Era uma época de muitos grupos. Tinham várias filiações políticas, as siglas se juntavam aos nomes quase como um sobrenome. Mesmo que você não fosse filiada ideologicamente a um grupo, mas se você andasse com certas pessoas ou fosse, no caso da academia, orientada por elas, era reconhecida como sendo daquela linha política. Então escolhi o Otávio Velho como orientador, porque eu tinha lido coisas dele e tinham me dito que ele era comunista, filiado ao PCB (hoje já posso falar isso. Ele era jovem, e só tinha uma orientanda, além de mim. Aliás eram todos jovens, a maioria só com o mestrado, fazendo o doutorado. Tínhamos poucos doutores em Antropologia naquele tempo.
Assim que concluí as disciplinas, surgiu a possibilidade de fazer pesquisa de campo para a minha dissertação no Piauí, integrando um projeto coordenado pelo Matta e pelo professor Roque Laraia, da UnB, financiado pela Fundação do Congresso Americano. Como eu queria muito fazer pesquisa de campo em algum lugar do Brasil “profundo”, e também por já ter participado de uma pesquisa com o Matta na Amazônia, me candidatei e fui selecionada. Ir para o Piauí naquele tempo era quase como ir para uma ilha no Pacífico. Pouco se sabia sobre a realidade piauiense, e a imagem que se tinha era recheada de preconceitos e estereótipos sobre atraso e pobreza. Isso tornava essa oportunidade ainda mais atraente para mim. Mas aí entra a minha ingenuidade. Na minha cabeça, não havia nenhum problema em ter um orientador e fazer o trabalho de campo vinculada a um projeto coordenado por outro professor, sendo este somente o “financiador” (ou intermediário) da pesquisa. Eu queria trabalhar com reprodução social camponesa, numa espécie de “estudo de comunidade crítico”. Já tinha aprendido as críticas aos estudos de comunidade clássicos que isolavam um pequeno universo e o deixavam sem referência em um contexto mais amplo etc. Por isso escolhi a orientação teórica do Otávio Velho, que tinha recém publicado sua dissertação de mestrado e trabalhava com uma lente mais ampla, na obra Frente de expansão e estrutura agrária. Eu fiquei muito impactada com esse livro e quis fazer o mestrado orientada por ele. Mas não deu certo. O Otávio Velho não aceitou que eu fizesse a pesquisa de campo em um projeto com o Matta e ficasse sob a orientação dele. Eu não entendia isso. Fiquei muito frustrada, acho que foi a minha primeira experiência de rejeição na academia. Então mudei de orientador. Fui trabalhar com o Matta, com quem me dava muito bem.
Aí senti como as coisas eram divididas: o grupo que estudava camponês, que era mais ligado ao Otávio Velho e ao Moacir Palmeira, não me chamava para nada, porque eu era orientanda do Matta, que não comungava com as mesmas ideologias, ele era tido como de direita. Essa foi uma situação de muita tensão, porque eu queria me aproximar mais do outro grupo, o do campesinato, com o qual eu tinha afinidades teóricas (e ideológicas), mas a relação ficava restrita às aulas. Eu era bem recebida pelos professores, mas entre os alunos havia certa discriminação, eles me colocavam de lado. Eu sentia que não me consideravam uma pessoa confiável. Bom lembrar que estávamos na ditadura, quando reinava uma desconfiança generalizada, todos desconfiavam de todos. Foi muito sofrido. Além disso, havia uma hierarquia bem marcada entre alunos e professores. Existia uma relação de autoridade acadêmica muito forte, e isso provocava alguma tensão entre os alunos. Você tinha que ser muito boa, você tinha que dizer coisas muito inteligentes durante as aulas. Era como se vivêssemos no planeta dos “Alfa Mais”, onde todos tinham de ser superdotados, aquelas coisas do Admirável mundo novo (Aldous Huxley), e não me sentia parte desse universo. Aquilo me marcou muito negativamente em termos pessoais, psicológicos, era muito pesado, uma cobrança muito grande. Fui fazer psicoterapia para sair do buraco. E aí desanimei de fazer o doutorado. Foram 12 anos entre o fim do mestrado e o início do doutorado.
Minha dissertação foi sobre a organização social de uma comunidade camponesa na região do vale do Gurgueia, Centro-Sul do Piauí, explorando a noção de patronagem (cara ao Roberto Da Matta) aplicada à relação de um padre, que criou uma espécie de assentamento privado, conhecido na época como Colônia, e os “colonos”. Defendi em 1976 e, em seguida, fui para a Inglaterra, acompanhando meu marido que ia fazer o doutorado, e levando minha filha, Ana, que tinha 6 meses.
Comecei a fazer o doutorado lá. Mas se o Museu era pesado, o University College London era assim uma relação de total submissão do aluno. Regras muito rígidas que a gente demora a aprender quando se é estrangeira e, enquanto isso, sofre e apanha. O componente da colonialidade estava muito presente, mas não era problematizado. Por exemplo, eles não consideraram o meu mestrado, então eu tive que fazer o MPhil, que é o Master of Philosophy, um título anterior ao doutorado, um nível intermediário entre o Master of Science e o PHD. Esse título não tinha reconhecimento no Brasil, e isso me desestimulou muito. Mas apesar da autoridade muito rígida exercida por aqueles antropólogos ingleses famosos que eu havia lido no mestrado, aprendi muito no UCL. Havia uma ênfase muito grande na etnografia. Discutíamos a teoria com base nas etnografias clássicas. Muita leitura, um livro por semana por disciplina. Entretanto, por diversas razões, principalmente por não me identificar com o orientador e, talvez, por inabilidade minha também nessa relação, não concluí este doutorado.
IDeAS: Mas lá tinha alguma pesquisa, você estava envolvida em algum tema específico?
Zezé: Eu falava que queria continuar minha pesquisa com camponeses no Piauí, na linha da organização social, pobreza e reprodução social. Aí me indicaram como orientadora uma mulher que era especialista em indígenas do planalto boliviano, que eu achava que não tinha nada a ver com o que eu queria, então, não aceitei. Assim, me indicaram outro orientador, um jovem antropólogo que pesquisava camponeses mexicanos, na perspectiva da Antropologia política. Fiquei sabendo, pela internet, que depois ele veio pesquisar pobreza e segurança em favelas aqui, em Salvador, mas nunca mais cruzei com ele. Mas na época ele era muito sem experiência, eu fui a primeira orientanda dele. Não conseguimos nos entender muito bem. Não deu certo. Diante disso, uma amiga, Maria Célia Paoli, que estava fazendo doutorado com o Hobsbawm, que também era professor do UCL, me colocou em contato com ele. Marquei uma conversa com o Hobsbawm. Mas eu tinha de propor a ele uma questão de pesquisa que fosse também do interesse dele. Como ele tinha escrito um livro, Os bandidos, que ficou muito conhecido aqui no Brasil, que falava do cangaço, propus fazer uma pesquisa de doutorado sobre o cangaço através da literatura de cordel. Ele foi muito gentil, mas falou: “Olha, eu vou te aceitar te orientar pra não te deixar na mão, mas eu não estou mais interessado em trabalhar nem com cangaço, nem com banditismo. Mas para você não ser prejudicada (ficar sem orientador), eu te oriento.” Ai eu pensei que não seria legal ser orientada por alguém que me aceitou só por “bondade”. Então, agradeci, mas recusei. Todo mundo, todos os meus amigos me criticaram: “Mas como você dispensa o Hobsbawm? Como você chega e fala ‘não quero trabalhar com o Hobsbawm, porque ele está fazendo caridade.” Mas não fui em frente, não seria legal ser orientada por alguém que não tivesse interesse no meu tema, mesmo sendo o Hobsbawn. Por outro lado, não tive abertura para que ele me propusesse uma questão de pesquisa. Essas coisas que a gente faz e só mais tarde se dá conta da mancada. Assim, acabei desistindo do doutorado na Inglaterra.
Quando voltei para o Brasil, fiz prova para o doutorado do Museu. Passei, mas depois pensei melhor, e desisti também. Meus traumas não tinham sido curados ainda. Pensei bem e decidi que não queria passar por aquele sofrimento novamente (risos). Escrevi uma carta para a coordenadora, que era a Lígia Sigaud, agradecendo muito, dei uma desculpa e desisti novamente do doutorado. Você vê que minha motivação não era muito forte.
Ao voltar da Inglaterra, fui ao Horto, onde funcionava o CPDA e, por indicação de um amigo que conheci em Londres, procurei o Ivan Ribeiro, que se tornou um grande amigo. Ele trabalhava no governo na época, no Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, e morreu num acidente de avião com o ministro Marcos Freire. Isso foi em 1987. Suspeitaram de algum tipo de sabotagem, mas nada foi provado. Por indicação do Ribeiro, que também era do PCB, passei por uma seleção interna e fui contratada como docente no CPDA, que estava no processo de transição da FGV para a UFRRJ.
Na mesma época, fiz concurso também para o Departamento de Antropologia da UFF. Então, comecei a dar aula no CPDA e na UFF. Fiquei nos dois, 20 horas no CPDA e 40 na UFF, até 1996, quando optei por ficar em dedicação exclusiva no CPDA. Era muito pesado, às vezes eu saía de Seropédica e ia para Niterói. Nem sei como aguentei. Quando voltei da França, fiquei trabalhando mais um ou dois anos nesse ritmo, mas senti que precisava fazer uma escolha para poder me dedicar mais, aprofundar meus estudos e fazer pesquisa. Fiquei na dúvida por algum tempo, porque na UFF eu estava no Departamento de Antropologia, minha área disciplinar, mas a relação com os colegas do CPDA, o clima de trabalho, era muito mais agradável. Foi uma escolha acertada da qual não me arrependo.
IDeAS: Mas como você chegou no ensino? Você já tinha vontade de dar aula? Por que ensinar assim? Como foi?
Zezé: Eu acho que era natural, não tinha muita alternativa. Era natural, eu sempre me coloquei como professora. Eu já tinha esse desejo desde o mestrado. A gente via como um caminho natural ir do mestrado ou doutorado para universidade. Sair da Academia para entrar na Academia. Não existia, como hoje, essa quantidade de ONGs e agências governamentais e internacionais que contratassem cientista social. O mercado de trabalho era muito limitado, só havia a universidade mesmo. Não tinha muitas opções. Havia a Clacso, mais uma ou outra, talvez o Iser… o Ibase… precisava ter contatos, tinha pouco dinheiro talvez, só sei que nunca trabalhei em ONG, não tinha demanda, então, a universidade se colocou sempre como meu único destino. Além do que, minha experiência em empresa não havia sido nada agradável.
Entrei como docente no CPDA e na UFF, somente com mestrado, porque na época eram poucos os cursos de doutorado no Brasil. Os concursos exigiam apenas o mestrado.
No final da década de 1980, fui para a França acompanhando o meu companheiro que ia fazer um pós-doutorado. Ele tinha dois filhos, e eu uma; juntamos as trouxas e fomos. Mas eu precisava de algum projeto profissional-acadêmico, não só para aproveitar a estada lá como também para pedir uma licença na universidade. Como estava justamente lendo um livro de uma francesa sobre questões de gênero no campo, muito interessante, Ceux de la terre (Aquelas da terra), organizado por Rose-Marie Lagrave, da École, em conjunto com outras pesquisadoras, pensei que poderia ser bom trabalhar com ela. Então escrevi para ela, mas não falei em doutorado, perguntei se me aceitava para fazer um estágio de aperfeiçoamento. Na época, imagine, o CNPq concedia bolsa de aperfeiçoamento para o exterior. Ela aceitou e ganhei a bolsa. Eu estava com tanta resistência a enfrentar o doutorado, que achei que essa seria a melhor opção. Ela é uma ótima pessoa, me recebeu muito bem. Então, iniciei esse estágio no Centre d’Etudes Rurales, da École, orientada por Rose-Marie. Passados uns meses, ela chegou para mim e disse: “Mas por que você não faz doutorado? Acho que não faz sentido você ficar aqui fazendo esse estágio, melhor você fazer o doutorado.” Rose-Marie acabou me convencendo, mas ela não podia me orientar porque não tinha passado ainda pela prova que se faz para habilitar o docente a orientar alunos de doutorado. Enquanto conversávamos, o Maurice Godelier passou na frente da porta da sala dela, e ela o chamou. Aí ele entrou e Rose-Marie foi direta: “Você quer orientar a Maria José?”, e explicou a situação. Ele aceitou. Tremi nas bases, como se diz. Tudo que eu não queria era ter uma “estrela” como orientador. Mas ele foi excelente, tanto em termos acadêmicos, como intelectual, pesquisador, quanto em termos pessoais. Muito aberto, muito receptivo. Nossa, ele foi muito bom, foi excelente orientador. Mas eu não morava em Paris, morava no Sudeste da França, em Grenoble, e fazia a ponte de trem (TGV) para assistir seus seminários de 15 em 15 dias. Como eu morava no sul da França, Godelier me convenceu a desenvolver uma pesquisa nas redondezas, nas aldeias francesas. Ele falou: “Olha, não faz sentido você vir do Brasil para estudar o Brasil aqui na França, porque as pessoas que entendem mais do Brasil estão lá. Então você vai ser mais uma que vai estudar o Brasil na França. Seria muito mais instigante se você fizesse uma pesquisa sobre a realidade francesa, porque aí você vai ter um estranhamento muito maior.” Achei o argumento válido, ele me convenceu a fazer uma pesquisa sobre a realidade francesa. Foi um senhor desafio, mas ele tinha razão, acho que aprendi muito mais! Bom, para quem não conhece, Maurice Godelier é um antropólogo que trabalhou inicialmente com Antropologia econômica. Ele publicou um livro no Brasil, em 1966, Racionalidade e irracionalidade da economia, que fez muito sucesso. Mais tarde, desenvolveu pesquisas entre os Baruya da Nova Guiné, sobre temas relacionados a poder, dominação masculina, simbolismos, sexualidade, parentesco etc. Ele se destacou como um crítico ao estruturalismo de Levi Strauss (e de Mauss); se contrapunha, por exemplo, ao pressuposto do tabu do incesto como propulsor das trocas e, por consequência, da cultura. Era materialista, marxista, e desenvolveu outra teoria sobre as origens da cultura e do tabu do incesto baseada nas relações entre poder, parentesco e economia. Godelier se juntou a um biólogo e pesquisou também essas relações entre os primatas superiores. Muito interessante. Pena que naquela época as relações entre humanos e não humanos não eram problematizadas na Antropologia.
IDeAS: Mas tinha a questão do campesinato… e foi aí que você entrou no tema da sucessão?
Zezé: Não, ele não estudava temas relativos ao campo. Aliás, ele considerava o camponês uma classe atrasada, politicamente falando. Uma visão leninista. Quando eu discutia com ele, dizia que eu estava sendo “esquerdista, doença infantil do comunismo” (rsss). Ele era aquele antropólogo clássico, que estudava parentesco, além de outros temas. A minha preocupação, já desde o mestrado, era com a questão da reprodução social camponesa e eu queria então estudar os camponeses ameaçados, não queria estudar os camponeses modernizados nem os agricultores bem-sucedidos; queria estudar os camponeses que ficaram à margem do processo de modernização na França. Além disso, eu tinha o foco nas questões de gênero, basicamente sobre o lugar que a mulher francesa ocupava nessa família camponesa, tendo como pano de fundo o boom do feminismo na década de 1970 e as mudanças acarretadas no lugar que a mulher ocupava na sociedade. O campesinato francês estava passando por uma crise de reprodução por falta de mulheres que quisessem casar com um camponês, como Bourdieu muito bem mostrou já na década de 1960 (Célibat et condition paysanne). Para escolher o lugar da pesquisa, fui ajudada por uma senhora da Chambre de l'Agriculture, uma espécie de Secretaria Estadual da Agricultura, com sede em Grenoble. Ela era extensionista voltada às “questões da mulher”, principalmente, para estimular atividades que ocupassem a mulher, então esvaziada de seu papel na lavoura. A situação da mulher camponesa mais velha era muito difícil. Sentiam que não tinham lugar na sociedade, muita solidão e isolamento. Havia muita depressão e, em alguns casos, suicídio. Essa extensionista me levava para acompanhá-la em suas visitas às camponesas. Fui a várias aldeias, com realidades diferentes (produtores de vinho, de leite, de queijo, entre outros), para escolher qual seria a “minha aldeia”. Então escolhi uma aldeia que me atraiu porque me pareceu ter um tecido social mais rico. Algumas aldeias estavam muito esvaziadas em virtude da diminuição da mão de obra necessária na agricultura. Na aldeia que escolhi, predominavam famílias de produtores de leite que conjugavam o trabalho na agropecuária com o trabalho extra-agrícola, seja no turismo (na estação de esqui próxima), seja nas fábricas de papel localizadas no vale (os chamados “operários-camponeses”), além de outras inserções. Foi aí que a pluriatividade entrou como tema da minha tese. Era um campesinato ameaçado, ou resiliente, se preferirmos que não conseguiu pegar o “bonde” da modernização agrícola e que era obrigado a “se virar” de diversas maneiras para se manter.
IDeAS: Era com uma agricultora? Com o grupo?
Zezé: Não, essa mulher, era tipo uma extensionista rural, e ela dava assessoria a um grupo de camponeses formado por homens e mulheres que se reuniam pra fazer suco de maçã artesanal. Eles criaram uma associação chamada Les Paysans des Sept Laux. Laux é uma palavra do antigo dialeto que significava lagos, pois havia muitos lagos naquela região dos Alpes formados pelo degelo. Ela dava assessoria a eles, tentando facilitar a operacionalização desse projeto de produção de suco de maçã. Eles alugaram um galpão para fazer o suco, era uma coisa muito artesanal, muito artesanal mesmo. O filtro era uma panela de pressão furada forrada no fundo com um tipo de celulose. O suco entrava na panela e saía pelo buraco, indo direto para as garrafas, que eram as de vinho, reaproveitadas. Eles faziam suco de maçã porque a maçã era a fruta que a maioria das propriedades tinha, eles não tratavam e não comiam, davam para os animais ou deixavam apodrecer no chão. Além dessa atividade, promoviam festas resgatando antigas receitas de culinária ou brincadeiras e jogos do passado, viajavam, iam visitar outras aldeias, outros grupos, e se reuniam para fazer o suco. Me interessei mais por esse grupo e daí fui conhecendo um, conhecendo outro, e formei o meu universo de pesquisa. E fiz a pesquisa basicamente nessa aldeia. Eu gostava muito mais da pesquisa, do fazer antropológico, do que das discussões teóricas. Fiz a pesquisa de campo durante um ano e pouco. Levava a família e os amigos brasileiros às festas da aldeia, foi muito divertido. Gostava também, claro, da comida e do vinho que sempre intermediavam as conversas e visitas.
IDeAS: Como chegou o tema das mulheres, das relações de gênero para você?
Zezé: A questão de gênero começou muito cedo para mim. A gente começou discutindo gênero em termos de política, de grupos, de debate político sobre a condição da mulher. Não era nada muito organizado, mas tinha essa discussão já antes de eu ir pra França.
IDeAS: No mestrado?
Zezé: Não, entre o mestrado e o doutorado. Mestrado eu terminei em 1976; o doutorado eu comecei em 1988. Tem 12 anos aí.
IDeAS: Mas já foi no CPDA? Você já estava no CPDA?
Zezé: Foi mais ou menos durante o período que entrei no CPDA, sim. A Anpocs tinha uma discussão que me atraía no GT sobre “Mulher e trabalho”, ou coisa parecida. Não se falava muito em gênero, era mulher, e a preocupação maior era com o trabalho. O grupo foi coordenado por Miriam Limoeiro, Heleieth Saffioti, entre outras. E tinha também a presença constante da Rose Marie Muraro nas mesas redondas.
Era uma discussão de forte conteúdo político. Então, sempre esteve comigo esse debate sobre a mulher, sempre fui feminista em termos de costume, de relação afetiva e de militância. Sempre, sempre. Na juventude, eu já era até casada, nós tínhamos um grupo de amigos de esquerda que militava no PCB, em diversas frentes: na universidade, na associação de moradores, nos cineclubes, no trabalho etc. As mulheres desse grupo resolveram criar um grupo para discutir “questões de mulher”, para falar da gente, um grupo feminista, mas que não se intitulava assim, porque havia muito preconceito, naquela época, relativo a essa denominação. Éramos umas cinco amigas, entre elas estava a querida Nilcéa Freire, que veio ocupar a Secretaria de Assuntos da Mulher no governo Lula. Chamamos de Grupo da Felicidade, porque os homens ficavam curiosíssimos com a nossa alegria e queriam saber o que a gente discutia, e a gente só ria. “Por que não podem discutir com a gente? Por que a gente não pode estar junto?”, perguntavam. Naquela época, eles eram mais presunçosos do que hoje, acho. E aí diziam que a gente era muito feliz, então a gente acabou nomeando o grupo de “Grupo da Felicidade”.
IDeAS: Você era do Partidão?
Zezé: Sim. E entrei para o Partidão quando eu era do Colégio Pedro II, era do secundário, do movimento secundarista. Me filiei nessa época, 1966, 1967. A gente tinha uma chapa de esquerda que queria derrubar a outra chapa do grêmio. Nossa chapa era Fera – Frente Estudantil de Renovação e Ação [risos]. Arrasamos, fomos eleitos e fizemos uma greve que já nem me lembro mais por qual motivo. Isso foi em 1966, 1967. Mas foi engraçado que a gente fez essa greve e os meninos botaram chiclete no cadeado do colégio bem cedo, antes de abrir o portão. Aí, juntou um monte de alunos na porta e a liderança fez discurso contra a ditadura e pela reivindicação que era, acho, o passe estudantil no transporte, o desconto na passagem do bonde. Aí a administração do colégio conseguiu abrir o portão e começaram a ameaçar o pessoal do grêmio. Então a gente arregou e disse: “Não, nós vamos entrar, porque nós somos do grêmio, se a gente não entrar a gente vai ser responsabilizado e vai ser expulso”. Então nós entramos, mas aí falamos com o pessoal para ficar… Olha que ideia. Quer dizer, a liderança abandona a luta e deixa os outros no fogo [risos].
IDeAS: E os outros ficaram?
Zezé: Não, obviamente. Ficaram com muita raiva da gente. Por que eles iriam segurar o ônus da repressão se a ideia da greve tinha sido nossa?! Esse movimento resultou numa comissão de inquérito. O professor de português, que era um cara ultradurão, mais velho, era o presidente. E eu fui convocada para depor… Então ele me perguntou: “você participou da greve?”. ‘Greve? Que greve? Não estou sabendo não” [risos]. “Você não sabe da greve?”. “Eu não sei de greve não.” “Eu nem vim à escola nesse dia” [risos]. Era a valentia e a hipocrisia da adolescência.
IDeAS: Mas você continuou no movimento estudantil na graduação?
Zezé: Continuei no movimento estudantil na graduação, no partido. A gente tinha o Cineclube Glauber Rocha, que era onde meu grupo de amigos da Tijuca militava. Quer dizer, eu militava mais separado, porque eu era da CTB, então me botaram na base dos operários de telefonia, que não tinha nada a ver comigo. Eu, uma garotinha classe média, com aqueles operários, coitados. Coitados deles e coitada de mim, porque a gente não tinha conversa. Como os meus amigos universitários e colegas criaram esse Cineclube Glauber Rocha como um espaço de discussão política a partir do debate sobre os filmes, passei a frequentar esse espaço. Passavam os filmes e depois discutiam, tinha até um frequentador assíduo que era da polícia, nós descobrimos. Estava infiltrado, mas todo mundo sabia. Foi engraçado. Não se fazia nada demais, se discutia os filmes. Era uma maneira da gente se encontrar, a gente tinha que estar junto. A discussão política acontecia depois. Não tinha celular, não tinha como se comunicar, era a maneira de saber o que estava acontecendo, de socializar as notícias e também de debater.
IDeAS: Mas nessa época ainda não tinham esse debate sobre as mulheres, tinha?
Zezé: Nessa época estava começando a se levantar questões sobre as mulheres. Depois que o PT foi criado é que o debate feminista, em termos da política, ficou mais forte. Mas me ausentei por três anos no final da década de 1970, quando fui para a Inglaterra. Lá o movimento feminista inglês estava muito forte.
IDeAS: Então a leitura das feministas inglesas influenciou você?
Zezé: Não, eu já estava com a discussão feminista durante o mestrado. Então, na década de 1970, início da década de 1970, já estava com toda essa discussão feminista. Meu convite de casamento, em 1972, começava com a famosa frase do Guevara: “Endurecer-se sim, perder a ternura jamais”. E era uma coisa que a gente discutia, a relação aberta… A década de 1970 foi muito revolucionária de costumes, depois encaretou tudo. Mas foi uma década bem revolucionária de costumes, a prática feminista tinha que ser exercida, a mulher não podia privilegiar a casa e o filho em detrimento da política e do trabalho e, enfim, tinha toda essa discussão de que o mais importante era a política, o trabalho, a mulher se colocar em condições de igualdade com o homem, tinha toda essa discussão já na década de 1970. A leitura teórica é que veio depois, na Inglaterra, com o contato com toda essa bibliografia das feministas inglesas.
IDeAS: Que legal! Então você viveu a segunda onda do feminismo aqui, foi para a Inglaterra, depois voltou para cá. Mas nas pesquisas, então, na verdade, foi no doutorado que você passou a incorporar essa leitura?
Zezé: É, ela foi meio que uma decorrência da discussão que eu fazia sobre a reprodução social camponesa, divisão do trabalho, essa coisa muito próxima ao que a Beatriz Heredia fazia, da divisão sexual do trabalho, casa e roçado. Então, a questão sobre a mulher veio em decorrência disso. E o livro da Rose-Marie, sobre as mulheres na França, me atraiu. Chegou em minhas mãos, mas não me lembro mais como. Antes de conhecê-la, a gente tinha feito um convite para ela vir ao Brasil para fazer o seminário no CPDA, e ela aceitou, mas aí não houve recursos, e foi preciso cancelar o convite. Depois, fui fazer [o aperfeiçoamento] com ela. Godelier insistiu muito para eu estudar família e não gênero. Ele dizia que não se podia entender as questões de gênero sem entender a família. De certa forma ele tinha razão, na realidade está tudo imbricado, mas a abordagem metodológica dele era sempre partir de uma problemática mais ampla para uma particular. Godelier entendia que gênero era uma dimensão menor, que estava incluída na família. Enfim, faz sentido, mas se eu centrasse na questão de gênero, ia estudar família de qualquer jeito, só que com outro olhar. É a perspectiva. Então, Godelier meio que forçou a barra para eu mudar, para focar na família e não no gênero. Na minha tese, há um capítulo sobre questões relativas à situação da mulher na família e na sociedade. A questão estava na minha cabeça, não dava para separar.
IDeAS: No CPDA, então, você teve muito esse campo de analisar, estudar a ruralidade. Como foi isso? Porque agora em 2012 você lançou um livro sobre ruralidade contemporânea. Como foi esse debate da ruralidade, da multifuncionalidade?
Zezé: A noção de multifuncionalidade veio depois. No CPDA, estabeleci uma forte interlocução com a Margarida Moura, antropóloga que estudava família camponesa. Fiquei trabalhando com ela e, logo em seguida, Moura saiu, foi para a UFF, depois para a USP. Ela saiu do CPDA e eu meio que continuei o trabalho dela no estudo sobre família. Família, sucessão, herança. No início do ano 2000, fui fazer um pós-doc na França, em Nanterre, e na École. Em Nanterre tinha um grupo forte no debate sobre a ruralidade. Um grupo antigo do qual participaram Henri Mendras (La fin des paysans), Michel Gervais, Marcel Jollivet, que foi presidente da minha banca de doutorado, e, entre outros, uma geógrafa, que também participou da minha banca, Nicole Mathieu, que estudava as relações campo-cidade.
No doutorado, como disse, trabalhei a noção de pluriatividade, ainda pouco utilizada no Brasil. Aliás, observei que existia (acho que hoje, como a agilidade da comunicação mudou) um gap de uns 20 anos entre o que se discutia na França e o que se discutia no Brasil. As questões teóricas da França demoraram 20 anos para chegar no Brasil, naquela época. Estou falando da década de 1980, quando fiz minha pesquisa de campo até os anos 2000. Hoje, acho que já é imediato. Quando cheguei aqui com a tese sobre pluriatividade, não tinha ninguém trabalhando nesse tema. Do meu conhecimento, apenas o Sérgio Schneider, que foi trabalhar logo depois na tese de doutorado, mas de resto, praticamente ninguém falando sobre pluriatividade. O estudo da pluriatividade me levou à questão da ruralidade, esse rural que se transforma em um rural não agrícola. Eu fui fazer esse pós-doutorado sobre essas mudanças no campo. Fiz um extenso levantamento bibliográfico desse debate francês que resultou na disciplina que ofereço desde então no CPDA, Rural e Ruralidades na Sociedade Contemporânea. Bem, hoje o programa está muito modificado, mas na época ele mapeava o debate francês, inglês e brasileiro sobre essas questões: O que vem a ser o “rural”? O que é essa nova realidade? O que é essa realidade que mistura o rural e o urbano? Sempre foi assim? Não era? O que háde diferente hoje? Será que a gente olhava o passado também de uma maneira muito fragmentada e hoje a gente está com outras lentes que se abrem e fazem você ver outras coisas? Quer dizer, é a realidade que se transformou ou é a nossa lente, nosso olhar que se transformou, e incorporou novas perspectivas? Então, era essa a discussão, voltada para a ideia de que o camponês não era mais o protagonista das relações sociais no campo, outros atores se incorporaram.
Eu passei por uma situação interessante na França, que revela muito o olhar que alguns estudiosos franceses tinham sobre nós, estudantes brasileiros. Quando me perguntavam, normalmente no almoço da cantina da École, sobre o tema da minha pesquisa, e eu revelava que iria estudar os camponeses franceses, a reação era de muito estranhamento. Como eu conseguiria entrar numa aldeia camponesa? Perguntavam. “Eles são muito fechados, eles não vão conversar com você.” Essa pergunta revelava um forte preconceito, porque vários franceses, a começar por Lévi-Strauss e outros tantos, foram para o Brasil fazer pesquisa. Ninguém estranhou esse fato. Quer dizer, transformar o Brasil em objeto de estudo pode, mas uma pesquisadora brasileira eleger como tema de pesquisa uma realidade francesa não pode. Bem, argumentei isso com um antropólogo francês, ele ficou “roxo” de vergonha ao se dar conta de seu preconceito, e se calou.
É claro que isso não aconteceu apenas no ambiente acadêmico, praticamente todos com quem eu falava sobre minha pesquisa, achavam que ia ser um absurdo, que eu não ia conseguir fazer essa pesquisa, o que revelava também um preconceito dos franceses urbanos em relação aos camponeses tidos como atrasados, que não sabem conversar direito etc. Total desconhecimento! Ao contrário, eles me receberam muito bem e abriram a porta de suas casas para mim. Foram muito gentis. Gostavam de que havia alguém ali para ouvi-los e gostavam também de falar sobre eles. Trabalhei com levantamento da genealogia deles e não tive dificuldade em obter respostas. Fiz vários amigos.
IDeAS: Tinha um olhar então eurocêntrico.
Zezé: Sim! Era totalmente eurocêntrico. Quer dizer, você pode fazer Antropologia se sair do centro para a periferia, mas não pode sair da periferia para o centro, entendeu? As pessoas falavam “você não vai entender o que eles falam. Eles são muito grossos”. Vinha também uma quantidade de preconceito contra os camponeses.
IDeAS: Um monte de elementos para sua pesquisa
Zezé: Eu inclusive falo isso em algum artigo que escrevi. E os camponeses falavam para mim: “Você é legal, porque ouve a gente. Não é como esse pessoal que vem de Paris dizendo o que a gente tem que fazer, o que é certo e o que é errado.” Porque é o que eles conheciam da extensão rural. Os pesquisadores ligados à extensão rural e a projetos governamentais eram, em geral, preconceituosos e presunçosos. Mas então, em síntese, foi isso, quer dizer, o tema mulheres foi uma decorrência do estudo da família, e a problematização sobre a ruralidade foi uma decorrência dessa discussão sobre pluriatividade.
IDeAS: Há pouco você foi uma das criadoras do Núcleo de Gênero e Ruralidades, acho que foi um marco para o CPDA. O que você acha desse processo atual do CPDA, essa leitura, os desafios. Como você enxerga esse debate agora?
Zezé: Eu acho incrível que isso só tenha acontecido agora. No meu entender, tem a ver com a relação entre ciência e sociedade, ou seja, com o tipo de questões que a sociedade impõe à academia. Como também estudo a relação de ciência, política e Estado, vejo com clareza como determinadas questões presentes na sociedade, mas ainda de uma maneira não muito incisiva, ou seja, uma questão que não assumia um lugar de destaque, de força, acabavam sendo silenciadas pela Academia. A questão de gênero ainda que discutida por alguns grupos na Academia não era considerada relevante pelo mainstream. Algumas pesquisadoras feministas eram alvo de chacotas, eu presenciei isso na Anpocs. As feministas sofriam o que hoje seria considerado bullying. E o pior é que, em geral, não reagíamos com rigor porque éramos fracas. No CPDA, também os estudos de gênero não eram considerados relevantes. Veja você, já no segundo número da revista Estudos, Sociedade e Agricultura - ESA, publiquei um artigo, com uma aluna, sobre gênero, em 1993. Há 30 anos. Essa aluna foi minha bolsista de Iniciação Científica na UFF e acabou desenvolvendo sua monografia sobre o papel das mulheres na agricultura em Lumiar (Nova Friburgo). Eu criei um grupo de estudo de gênero com alunos da iniciação científica na década de 1980, com bolsa do CNPq, mas quando fui para a Inglaterra, tive de interromper esse projeto.
Então teve esse artigo publicado naquela época, mas era uma coisa assim considerada irrelevante, não era um tema de interesse no CPDA. As questões de maior peso eram as voltadas para o desenvolvimento agrário, organização política no campo, conflitos, e por aí vai. O mesmo acontecia em relação à noção de campesinato. A disciplina que eu oferecia se intitulava “Sociedades Camponesas”, mas em uma reunião do colegiado fui provocada a mudar para “Agricultura Familiar”, porque se considerava que camponês era coisa do passado. É muito interessante como essas questões são reelaboradas conforme a política e a sociedade, e como a Academia responde incorporando ou rejeitando temas. Hoje a situação é diferente, como você bem pode observar.
A tendência do CPDA sempre foi de estar atento às questões a sociedade está se colocando de maneira hegemônica, diria, os temas que a sociedade elege como fundamental. Importante considerar que temas sobre o rural e a agricultura sofriam certa discriminação, eram (e são) considerados irrelevantes pelos nossos pares. Mas é interessante observar que o público que procura o CPDA também segue a onda das questões em moda no momento. Então, tinha uma época que só se falava em assentamentos, movimentos sociais, MST; tinha muita gente querendo estudar esses temas. É claro que essa demanda tinha a ver com a maior atuação dos movimentos sociais no campo e com as políticas de reforma agrária. Antes disso, era a questão do desenvolvimento da agricultura, modernização e o papel do Estado. Não se falava, na década de 1980, em agricultor familiar nem em camponês, era o “pequeno produtor” e seu lugar na expansão do capitalismo ou no desenvolvimento. Depois, já durante os governos Lula, o foco foi para a análise das políticas públicas. Os alunos, alguns vindos da esfera governamental, queriam estudar as políticas públicas. Mais tarde surgiu a preocupação com as questões ambientais. E agora você vê, só agora (já tem uns 4 ou 5 anos), que tem espaço para se colocar a questão de gênero na seleção. E o mais importante é que temos alunos interessados nessas questões e pessoas mobilizadas para criar um grupo de pesquisa em gênero. Ou seja, tem a ver com o que está acontecendo na sociedade. A Academia, a ciência, não está separada da sociedade ou do Estado. Existe uma coprodução aí. É claro que estou fazendo uma análise muito superficial, e devo estar cometendo algumas incorreções, mas é uma questão que até mereceria um estudo mais aprofundado, para entendermos nós mesmos e a instituição.
IDeAS: Ao mesmo tempo você relaciona isso com os contextos, né? Então a época do MST, por exemplo, a força do MST, demandava leitura sobre assentamento…
Zezé: Pois é, a força do MST, o sindicato, a questão da Contag, a organização política sindical… essas questões. O CPDA sempre foi procurado por pessoas com essas preocupações, que talvez eram questões também que a política de alguma maneira ecoava, a política sindical, as agências de assessoria, os sindicatos etc.
IDeAS: De forma simultânea parece que tinha abertura para esses movimentos, para o movimento de mulheres, para o debate feminista, não tinha essa abertura? Sua história mostra quanto o tema é muito antigo e nunca chegou com força para o CPDA.
Zezé: Não, nunca chegou, é verdade, você tem razão. Foi colocado em banho-maria mesmo. Em banho-maria não, foi congelado. Mas é importante registrar que também não havia uma demanda por parte dos alunos para essas questões.
IDeAS: A história de cada um de vocês fala muito do que é o CPDA, do que são as leituras, do que ficou como tema, do que não ficou como tema, por que tem temas que ficaram tão no centro do debate, que foram relegados. O que isso significa e qual a relação que cada um de vocês tem com isso? Acho que a ideia das entrevistas é um pouco isso, não é só pensar na sua história, mas como a sua história se cruza com a do CPDA e com as leituras sobre ruralidades e mundo rural no Brasil e no mundo. Tem uma troca aí também. Você falou das parcerias, dos intercâmbios, das trocas com outras organizações, com outras agências, com outros institutos. Como isso também fortaleceu o CPDA?
Zezé: Isso mesmo, Sarah. Essa ideia das entrevistas com os professores é muito boa e pode render bons frutos. No futuro, alguém pode se interessar em fazer uma análise delas para entender o que é, ou foi, o CPDA. Serão vários pontos de vista, e isso é muito rico.
IDeAS: Mas você ficou muitos anos sem trabalhar gênero, então?
Zezé: É, eu fiquei depois da tese, quando comecei a discutir o tema ruralidade, as questões de gênero ficaram de lado pelos motivos que já apontei. Meus assuntos de interesse passaram a ser o campesinato, a família e a ruralidade. Mas estava sempre presente. Ele ficou de lado porque a sociedade também não discutia. Não era uma questão. Não tinha ninguém procurando estudar gênero no CPDA. Na década de 2000, aproximadamente, acho que as problemáticas de gênero vieram com mais força, estimuladas, talvez, pela criação da Secretaria das Mulheres, e pelos movimentos sociais de gênero que se multiplicaram. E surgiu o movimento de organização das mulheres, as conferências, e foi nesse momento que esse tema meio que veio mais à tona. Ressurgiu, na verdade.
IDeAS: Só para encerrar, você quer acrescentar alguma coisa importante sobre a sua contribuição para o CPDA relativa ao tema ruralidade? Qual o interesse que ele tem hoje para o CPDA ou para a história da leitura sobre o mundo rural?
Zezé: Acho que essa tentativa de entender a ruralidade contemporânea e a relação rural-urbano tratada na disciplina a que me referi anteriormente foi muito importante. Principalmente em razão do objetivo que coloquei sempre na disciplina de desconstruir essa noção de rural que é naturalizada como alguma coisa fantasiosa, que cada um tem na cabeça e pensa que é verdade, que é a realidade. Confundem o imaginário com o real. O rural idealizado por cada um. Então, ao que essa noção de rural remete? Que ideias estão embutidas aí dentro? A necessidade de desenvolvimento, de modernização está vinculada à imagem que se tem do rural. Na minha opinião, essa foi uma discussão com a qual contribuí, ainda que os resultados, em termos da sua operacionalidade nas teses e dissertações, nem sempre tenham correspondido ao desejado. Depois, também criei o Núcleo de Pesquisa em Ciência, Natureza, Informação e Saberes – Cinais, que foi um núcleo importante que surgiu a partir de uma interação com a França. Foi daí que esse meu interesse em estudar a relação ciência, sociedade e estado despontou. Partiu de um projeto de pesquisa, financiado pela comunidade europeia, mas com suporte do governo francês que visava entender como se dava o uso do conhecimento científico em três países: França, África do Sul e Brasil. Fiquei responsável pela coordenação da pesquisa no Brasil. Foi um grupo bem dinâmico e diverso: tinha biólogo, farmacêutico, botânico, etnobotânico, socióloga, além das minhas alunas. Resultou em uma dissertação de mestrado, aliás, premiada como melhor dissertação pela Anppas (da Laila Sandroni), e vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. Creio que foi o meu período mais produtivo academicamente. Continuei com esse tema de pesquisa, depois do término do projeto internacional, com o apoio de recursos da Faperj e do CNPq. Depois veio o golpe, e tudo acabou.
IDeAS: Foi criado em que ano?
Zezé: O Cinais foi criado em 2007, 2008, por aí. Mas esse projeto começou em 2006. Outra realização que quero destacar é a coletânea (Ruralidades Contemporâneas: modos de viver e de pensar o rural na sociedade brasileira) que publiquei com artigos de meus alunos de doutorado que estudavam a ruralidade. A pesquisa e a organização do livro teve recurso de uma bolsa que ganhei da Clacso. O acertado é que a Clacso iria publicar, mas esperei 8 anos e nunca pediram o livro para publicação. Após esse tempo, pedi financiamento à Faperj para editar o livro. Foi muito bom, uma experiência muito rica. Gosto de publicar com alunos, e acho que fui uma das primeiras no CPDA a publicar com eles. Essa prática ainda é muito questionada por colegas que entendem que pode haver uma apropriação do trabalho do aluno por parte do professor. O que é uma coisa “maluca”, porque quem tem conhecimento é você, o orientador, de alguma maneira, faz a tese com o aluno. Por outro lado, tem que ter cuidado. Reconheço que existem pessoas muito ausentes na atividade de orientação e que depois pegam carona no trabalho do aluno. Isso, sim, é apropriação indébita. Enfim, apesar das controvérsias, a Capes estimula esse tipo de publicação. A meu ver, quando a coisa é bem-feita, há um ganho dos dois lados. O artigo que escrevi com a aluna de iniciação científica foi publicado no início de 1990, depois publiquei outros com ela. Eu gosto muito. Acho que é ultradidático, além de prazeroso. Mas é verdade que os artigos que editei com alunos foram todos decorrentes da participação deles em meu projeto de pesquisa, um trabalho de equipe. Confesso que tenho também critérios para fazer essa publicação conjunta.
IDeAS: A gente aprende junto.
Zezé: A gente aprende junto, a gente cresce junto. Muito bom.
IDeAS: Faz muita diferença
Zezé: Agora isso já está bem mais aceito.
IDeAS: Sim.
Zezé: Mas é bem recente.
IDeAS: Quebrando as estruturas hierárquicas… Você começou falando disso. Do quanto isso a incomodava, então, em alguma medida, acho que você foi tentando fazer diferente.
Zezé: Creio que sim. Apesar de os alunos morrerem de medo de mim, dizerem que sou muito brava. Brava, não sou não. Dizem que eu era muito brava, que era muito exigente.
IDeAS: Mas você acha que mudou ou a visão sobre você que mudou?
Zezé: Eu acho que mudei. Tinham razão mesmo, eu era muito exigente e cobrava muito. Ainda continuo cobrando, mas com mais ternura…
IDeAS: Você viu que não precisava.
Zezé: Não precisava. Porque eu tinha uma coisa muito assim: se você está ganhando bolsa, você tem que cumprir os prazos. Você não pode ganhar bolsa e esquecer que você está ganhando do governo brasileiro, do Estado brasileiro, do povo brasileiro para trabalhar. Então, o que se vê é que, quando se trabalha para uma ONG, ou mesmo para uma agência governamental, em uma assessoria, por exemplo, você corre para entregar o trabalho no prazo. Agora, quando se ganha uma bolsa do Estado, aquilo é visto como uma obrigação do Estado e não como uma remuneração pelo seu estudo, pelo seu aprendizado, e aí você não devolve o trabalho no tempo esperado? E isso sempre me incomodou e ainda incomoda muito. Talvez por isso me consideram brava. É preciso ter responsabilidade para se ter o direito de cobrar. Como um Programa que tem baixo índice de defesa de teses e dissertações vai reivindicar mais bolsas do governo?
IDeAS: Também você começa a entender que o contexto vai ficando mais complexo.
Zezé: Você vai entendendo mais o contexto, como o da pandemia, por exemplo. Mas me incomoda. Me incomoda muito o pessoal que não responde às obrigações. Assim, você tem uma obrigação, você está ganhando para realizar um trabalho, você tem um contrato…
IDeAS: Acho que é isso aí. A gente poderia ficar horas aqui.
Maria José Teixeira Carneiro Doutora em Antrhopologia Social pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1993). Pós-doutorado na Université Paris X (Nanterre), na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e na Unicamp (I.E.). Professora Titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Antropologia, Sociologia Rural e, mais recentemente, sobre Sociologia da Ciência, atuando principalmente nos seguintes temas: agricultura familiar, ruralidade; juventude e gênero no meio rural, relações campo-cidade ; relações natureza e sociedade, relação entre ciência e política pública nas áreas da conservação da biodiversidade e agricultura familiar Em 2012 publicou o livro: "Ruralidade Contemporânea: modos de viver e pensar o rural na sociedade brasileira" como organizadora da obra, autora e co-autora de artigos do seu grupo de pesquisa. ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/6910171165637315 |
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 17, 1-21, e023004, jan./dez. 2023 • ISSN 1984-9834
[1] Entrevista realizada no dia 20 de junho de 2022.