Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 16, 1-26, e022004, jan./dez. 2022 • ISSN 1984-9834
Artigo original • Revisão por pares • Acesso aberto
Reflexões sobre a agroindústria canavieira, neoliberalismo e degradação das condições de trabalho
Reflections on sugarcane agroindustry, neoliberalism and degradations of working conditions
Filipe Moreira de Azeredo Tavares[1]
Resumo Após a crise dos Estados de bem-estar social na Europa, nos anos 1970, políticas neoliberais foram implementadas. Tendo como objetivo principal a redução dos investimentos do Estado nas áreas sociais e a autorregulação do mercado, altera as estruturas socioeconômicas da Europa. Os direitos sociais, trabalhistas e o compromisso com o pleno emprego, oriundos do Acordo de Bretton Woods, deixam de constituir agendas principais para os países, engendrando processos de degradação das condições de trabalho. O objetivo deste artigo é demonstrar que enquanto a Europa passava pelo processo de desmonte de políticas trabalhistas, os canavieiros brasileiros vivenciavam regularmente situações de ausência de direitos, superexploração e trabalho clandestino. Logo, evidencia-se que as preocupações sobre a desconstrução do modelo de regulação do trabalho na Europa após o neoliberalismo já eram apontadas pela bibliografia no campo brasileiro. Palavras-chave: Neoliberalismo; agroindústria canavieira; trabalhadores rurais; modernização conservadora; superexploração do trabalho. Abstract After the crisis of the welfare state in Europe, in the 1970s, neoliberal policies are implemented. Aiming the reduction of state investments in social areas and the self-regulation of the market, it changed the socio-economic structures of Europe. Social and labor rights and the commitment to full employment derived from the Bretton Woods agreement, no longer constitute main agendas for countries, engendering processes of degradation of working conditions. The purpose of this article is to demonstrate that while Europe was going through the process of dismantling labor policies, Brazilian sugarcane workers regularly experienced situations of lack of rights, overexploitation and clandestine work. Therefore, it is demonstrated that the concerns about the deconstruction of the model of labor regulation in Europe after neoliberalism were already pointed out by the bibliography in the Brazilian rural areas studies. Keywords: Neoliberalism; sugarcane agroindustry; rural workers; conservative modernization; overexploitation of work . | Submissão: Aceite: Publicação: |
Citação sugerida TAVARES, Filipe Moreira de Azeredo. Reflexões sobre a agroindústria canavieira, neoliberalismo e degradação das condições de trabalho. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 16, p. 1-26, e022004, jan./dez. 2022. Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0). |
Introdução
Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os países capitalistas se preocuparam com a possibilidade de retorno da recessão econômica e desemprego, diante da desmobilização da indústria de guerra e dos recursos humanos, naturais e industriais que mobilizavam. Como solução ao desemprego e ao agravamento de crises econômicas, comprometeram-se a instaurar políticas de inspirações keynesianas com o objetivo de manter o funcionamento da economia capitalista. O consenso entre as potências com vistas a reconstruir a Europa e restabelecer os acordos comerciais, defender as economias domésticas e introduzir estabilidade monetária foi denominado Acordo de Bretton Woods, cidade do estado americano New Hampshire, onde ocorreu o acordo, em 1944 (BARUCO, 2005, p. 22).
Esse período que sucedeu o pós-guerra na Europa favoreceu a ampliação dos direitos sociais, trabalhistas e o compromisso político com o pleno emprego, levando à constituição dos chamados Estados de bem-estar social, ou welfare state. Mesmo com os interesses governamentais, a expansão dos gastos públicos relacionados aos setores sociais não fora concedida de forma benevolente, mas sim, decorrente das lutas da classe trabalhadora dos respectivos países diante das disputas ideológicas num mundo pós-guerra.
Além disso, a adoção do keynesianismo pelos estados europeus estava ligada ao contexto de desenvolvimento de novos modelos de produção, especialmente o fordismo. São essas políticas de pleno emprego, intervenção estatal e defesa dos direitos sociais como indicadores de estabilidades questionadas com a crise de acumulação do sistema capitalista, iniciada nos anos 1970, que levou ao fim do welfare state. Diversas são as razões para o declínio, entre elas, a incapacidade dos estados em manter economicamente os acordos estabelecidos em Bretton Woods e a dificuldade na conciliação entre a inflação e o crescimento econômico (MENDONÇA, 1987).
Pela primeira vez, desde a Segunda Guerra Mundial, “verificam-se quebras absolutas nos indicadores da produção e o emprego registram recuos importantes, aumenta a capacidade ociosa, as falências multiplicam-se” (MENDONÇA, 1987, p. 24). Outro fator de destaque foi a crise do petróleo, ocorrida no final de 1973, manifestando-se na quebra dos indicadores de produção (BARUCO, 2005, p.39). Diante dessas situações, somadas à inflação e ao endividamento público, a política econômica keynesiana passa a ser considerada os males do mercado, e a ação do Estado como agente interventor, questionada pelos capitalistas.
Portanto, um novo modelo econômico-ideológico internacional foi pensado para substituir as agendas econômicas até então adotadas e difundidas pelo Estado de bem-estar social: o neoliberalismo[2]. A transformação, pensada pelos capitalistas com vistas a diminuir o papel do Estado, tinha dentre seus objetivos destruir as políticas assistencialistas, frear os movimentos sociais e sindicais, achatar o poder de compra da classe trabalhadora e ampliar os processos de superexploração do trabalho (DARDOT; LAVAL, 2016). Em todo o Ocidente, especialmente no continente europeu e norte-americano, as elites questionaram os valores relativos ao amparo dos desfavorecidos e despossuídos de meios de produção. Não coincidentemente, neste período o Brasil e outros países da América Latina passaram por golpes militares, com fortes repressões, assassinatos e desaparecimentos de líderes sindicais, militantes comunistas, padres e camponeses.
Como demonstra Antunes (2008), a reorganização do mundo produtivo foi criada com o objetivo de recuperar o ciclo de expansão e recompor o projeto de dominação social. A partir daquele momento, a reorganização do processo produtivo procurou gestar uma recuperação da hegemonia “das elites/classes dominantes” em diversas esferas da sociabilidade, como no plano ideológico, promovendo o culto do subjetivismo e a difusão do ideário do individualismo exacerbado contra formas sociais de solidariedade e de atuação coletiva.
Os autores Dardot e Laval (2016) demonstram que o neoliberalismo gestou discursos através de diversas esferas da vida social, como a escola, a mídia e o trabalho. As argumentações consistiam, na maioria, no ataque à dignidade dos indivíduos auxiliados de algum modo pelo Estado, relacionando as políticas públicas de redução da pobreza, redução das taxas de desemprego e aumento do poder de compra à vadiagem e à ausência de espírito orientado para o trabalho. Portanto, para justificar as transformações na economia mundial nas décadas de 1970 e 1980, acionaram diversos discursos e posicionamentos de ataque aos trabalhadores e políticas que estruturavam, naquele momento, a ordem social.
Em alguns países europeus, como Portugal, Espanha e Grécia, a desregulamentação, flexibilidade, precariedade, perda dos direitos sociais e trabalhistas foram condições hegemônicas para manutenção do capitalismo neoliberal. Conforme evidencia Valencia (2016, p. 121), mais do que sintomas da crise do capitalismo e dos mercados de trabalho, esses elementos foram convertidos em sistemas jurídico-institucionais dos regimes de trabalho, com vistas a reproduzir as políticas e interesse dos agentes representativos do capital, isto é, empresários e seus aparatos burocráticos e administrativos (idem, p. 122).
No campo das relações de produção, a redução da influência do Estado e a intensificação da produtividade agravou as condições de trabalho em todo o mundo, acirrando os conflitos entre capital e trabalho. Streeck (2013) demonstra a luta dos trabalhadores a partir dos anos 1960. Segundo ele, do ponto de vista dos trabalhadores, as exigências eram expressões do crescimento econômico e da prosperidade, cuja retribuição era justa. Por outro lado, para o capital, melhores remunerações significavam redução das taxas de lucro e a concessão de direitos para além do que já eram obrigados. Essa crise de expectativas gestou ciclos grevistas em todo o mundo, com pressão dos sindicatos por melhorias, demonstrando a conflituosidade do avanço neoliberal.
Um dos exemplos de repercussão na Europa contra as transformações nas relações de trabalho e direitos sociais foi a greve francesa de 1985, iniciada por funcionários públicos em oposição ao projeto de reforma da seguridade social implementado pelo governo de direita de Alain Juppé (GALVÃO, 2001). Na Grã-Bretanha, entre 1978-79, em pleno inverno, mais de duas mil greves foram registradas contra as medidas de proibição do aumento de salários, promovidas pelo governo de Margareth Thatcher (LÓPEZ, 2014)[3].
Evidentemente, trabalhadores de múltiplos setores e países foram afetados com a investida neoliberal, desmonte das regulações do Estado e a flexibilização do trabalho, como mostram os estudos de Antunes e Alves (2004), Antunes (1995, 1999), Alves (2000), entre outros. Entre as consequências do neoliberalismo para o mundo do trabalho, destacam-se a “livre negociação”, ocasionada pelo afastamento do Estado e o enfraquecimento do sindicalismo; contratos informais ou de meio período; aumento da produtividade; terceirização; exclusão dos jovens do mercado de trabalho, entre outras.
Este trabalho, porém, demonstra que o universo da agroindústria canavieira brasileira já apresentava relações de trabalho degradantes, ausência de direitos trabalhistas, opressão, contratos informais e temporários antes do desmonte do welfare state em decorrência da implementação das políticas neoliberais. Compreende-se que enquanto a Europa passava por desmontes nas políticas trabalhistas e sociais, um dos setores mais importantes do mundo vivenciava em seu cotidiano a miséria e a dominação.
No caso brasileiro, houve modernização da agricultura sem a estruturação de fortes bases jurídicas e sociais de proteção ao trabalhador. Ao passo que o capital no exterior avançava sobre os direitos conquistados, no Brasil ele reforçava situações de precariedade constituídas e excludentes. Em síntese, se lá a transformação do capitalismo precisou limitar os benefícios e conquistas para o processo de acumulação de capital, aqui os trabalhadores nunca tiveram acesso ao direito como forma “costumeira” das relações de trabalho.
Consideradas as relativas diferenças entre continentes, países e desenvolvimentos históricos, nosso objetivo é apontar para questões relacionadas à intensificação do trabalho, a roubos, às expropriações e ao adoecimento psicofísico dentro da indústria canavieira e como esses problemas estão presentes no Brasil como constitutivos das relações de trabalho do setor. Para fundamentar as análises, foram utilizados estudos de diversas regiões, com vistas a indicar aspectos comuns no trabalho canavieiro que permitem constituir explicações gerais para problemas regionais compartilhados.
O presente artigo subdivide-se em seções. Iniciamos a discussão definindo e analisando como e por que ocorre a superexploração no setor. Posteriormente, foi examinado o pagamento por produção e as problemáticas que envolvem esse formato. Essas explicações servem de base para a análise de como a intensificação do trabalho e a superexploração levam ao adoecimento psicofísico e ao caráter descartável da mão de obra do ponto de vista neoliberal. Por fim, tecemos considerações finais sobre a temática.
Superexploração do trabalho e agroindústria canavieira
O Brasil passou por profundas transformações produtivas a partir dos anos 1950. No campo, o processo de modernização da agricultura capitalista mecanizou algumas tarefas, industrializou a produção, redefiniu padrões de comercialização e expandiu a capacidade produtiva. Ao mesmo tempo, esse processo acompanhou a degradação das condições de vida das populações rurais, a expulsão dos camponeses, o aumento da especulação fundiária, o crescimento do número de trabalhadores sem-terra e a exacerbação da violência (IANNI, 1985).
Na agroindústria canavieira, a expansão dos capitais industriais ligados à produção agrícola, enquanto ao passo que reposicionava os usineiros na estrutura capitalista e abria mercados de trabalho qualificados para as áreas técnicas, expropriava os trabalhadores rurais das terras e direitos. Os processos ligados ao ritmo e à apropriação do trabalho produzido engendraram a superexploração, indispensável para compreender como é operacionalizada a remuneração na agroindústria canavieira.
Compreende-se a superexploração de maneira abrangente, mas especialmente embasada na análise de Marini (1972, 2000),[4] considerando aspectos como intensificação do trabalho, prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho imprescindível para repor a força necessária. É, portanto, vista como princípio orientador do desenvolvimento capitalista, que extrai lucros mediante o salário não pago. A superexploração no setor sucroalcooleiro, especialmente no corte e por meio do pagamento por produção, estimula o aumento da intensidade, o prolongamento da jornada e o desgaste dos trabalhadores[5]. Segundo Osório (2009):
A superexploração remete a uma forma de exploração em que não se respeita o valor da força de trabalho. E isso pode se dar, como vimos, de maneira direta sobre o seu valor diário, via apropriação de salários. Ou então, de maneira indireta, via prolongamento da jornada ou intensificação do trabalho, que, ainda quando venham acompanhadas de aumentos salariais, acabam afetando o valor total da força de trabalho e, por intermédio disso, o seu valor diário (p. 175-176).
Consideramos importante mencionar o processo de modernização da agroindústria, iniciado nos anos 1960 nas regiões produtoras de cana-de-açúcar no Brasil. A partir de diversos empréstimos concedidos durante o governo militar, os usineiros puderam acessar tecnologias, maquinários para aumentar a produtividade, reduzir a mão de obra humana e garantir a permanência no mercado[6]. Apesar da contradição do período em que o neoliberalismo no exterior demandava menores intervenções do Estado na economia e na vida privada, o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e os ministérios do Governo Federal, no Brasil, promoveram inúmeros benefícios aos usineiros, criaram planos estratégicos de desenvolvimento do setor (como o Planalsucar e Proálcool) e financiaram suas dívidas.
A modernização conservadora, tem na explicação do termo que, durante o período, aumentou-se a concentração da terra, as disparidades de renda, a autoexploração nas propriedades menores, o êxodo rural, a violência contra os trabalhadores dentre outras consequências (PALMEIRA, 1989)[7]. O processo se intensificou e em algumas regiões concretizou a expulsão em massa de moradores de antigas fazendas e usinas. Com a expropriação, poucas alternativas foram viáveis para continuar sobrevivendo, as mais comuns: o êxodo para as cidades – em busca de trabalho na construção civil, setor aquecido com a construção de grandes obras públicas nos anos 1960 e 1970 – ou o assalariamento – sob contratos informais, temporários e exploratórios.
A aplicação de capitais que foram responsáveis pela transformação das fazendas e usinas, com a utilização de tecnologias importadas e/ou fabricadas nacionalmente, conviveu lado a lado com a miséria dos assalariados rurais. A expansão dos negócios, ou seja, as previsões de aumento da matéria-prima colhida e transformada em produto, representou uma redução no nível de vida e do salário.
O resultado desses investimentos na vida dos trabalhadores canavieiros é nosso interesse de análise porque as degradações das condições foram exacerbadas e indicam as razões pelas quais essa função é considerada exaustiva e, por vezes, desumana, com práticas que persistem em todo o país. Dentre as explicações, tem-se o pagamento por produção, a ausência de direitos civis e trabalhistas, o desgaste físico, as metas de produtividade, a inexistência de controle da produção, entre outras razões. Essas situações estão presentes no Brasil antes do desmonte das políticas trabalhistas na Europa, evidenciando a desproteção dos assalariados rurais brasileiros.
Com a introdução de novos padrões capitalistas, registra-se, nas regiões Sudeste e Nordeste, o incremento da produtividade por pessoa, cujos malefícios serão discutidos posteriormente. Alves (2006) considera que na década de 1950 a proporção era de 3 toneladas de cana por dia por pessoa. Na década de 1980, aumentou para 6 toneladas, chegando ao final da década de 1990 e início dos anos 2000 a 12 toneladas por dia/homem. Scopinho (1999), ao analisar a correlação entre a produção de uma colheitadeira mecânica e um trabalhador, aponta que na região de Ribeiro Preto, nos anos 1990, a média por homem em uma das usinas analisadas era de 7 toneladas, resultado próximo ao estipulado por Alves (2006).
Outros autores embasam essa estimativa, como Verçoza (2012), que apontou em Alagoas a média mínima de 7 toneladas, em 2011. Guanais (2010), ao examinar um sistema alternativo ao pagamento por tonelada, conhecido por “quadra fechada”, constatou que com os roubos nas remunerações os trabalhadores chegavam a cortar 25 toneladas por dia, remunerados, porém, abaixo de 15 toneladas.
Graziano (1989) apud Gonçalves (2005) indicou no final da década de 1980 a produção de 9 toneladas por dia. O cenário é ainda mais grave se considerarmos as afirmações de Gonçalves (2005, p. 123), que aponta a produtividade de 10 toneladas na região de Cosmópolis/SP, no início dos anos 2000, enquanto na década de 1960 a média regional era de 6 toneladas/dia. No Rio de Janeiro, no final dos anos 1970, registrou-se a média de 6 toneladas em uma das usinas mais produtivas da região de Campos dos Goytacazes (RIBEIRO, 1987).
Ao considerar o aumento da produtividade regional e a dominação exercida sobre os corpos dos trabalhadores, deve-se ponderar outras questões como elementos indissociáveis para manutenção dos índices de produtividade e exploração até hoje, como a questão migratória e as relações entre Estado e classe patronal. A migração reflete as estratégias empregadas pelos usineiros e plantadores para burlar a ação dos sindicatos locais, greves e paralisações ao atrair mão de obra barata de estados com mais vulnerabilidades sociais e econômicas. O número de trabalhadores migrantes, por sua vez, é difícil de ser quantificado de forma geral diante do caráter informal da contratação via empreiteiras.
Os trabalhadores oriundos de regiões do Sudeste como o Vale do Jequitinhonha (MG) ou estados como Maranhão, Piauí, Ceará para áreas do corte em São Paulo, especialmente, inserem-se num movimento marcado pela expulsão perante a impossibilidade de reprodução no local de origem, por diversas razões, tais como ausência de mão de obra familiar, falta de recursos para investimento na lavoura, condições climáticas desfavoráveis, baixa escolaridade para busca de emprego em outras áreas, entre outros fatores.
Como demonstrado por Alves (2007), o perfil do trabalhador migrante para as áreas de produção canavieira refere-se aquele cuja trajetória na lida da terra faz parte da sua criação, seja como proprietário ou arrendatário. A opção por trabalhadores oriundos do Maranhão, Piauí e Ceará, no caso paulista, não é acidental, mas por estarem acostumados a um modelo de agricultura de toco, com trabalhos pesados como derrubada de mata, árvores, construção de cerca para o roçado, entre outros. São majoritariamente homens, chefes de família que durante a safra migram sozinhos para garantir a subsistência dos que permaneceram. A escolha por trabalhadores responsáveis pela família também não ocorre de forma aleatória, mas diante da possibilidade de pressionar por produtividade e ameaça de demissões, ciente da expectativa dos filhos e esposas que aguardam não só o chefe, mas o dinheiro acumulado, ou o que Guanais (2014) denomina “dinheiro da cana”.
O “dinheiro da cana” se insere numa lógica de acumulação. A migração torna-se não um fim em si, mas um meio para atingir determinados objetivos. São ações racionais que perpassam o filtro das vantagens e desvantagens diante do ritmo da exploração conhecido pelos trabalhadores. Migra-se para “juntar dinheiro” para investir na roça, comprar imóveis, móveis, motos, poupar para emergências, entre outras situações. Como evidencia Guanais (2014, p.7):
O dinheiro da cana é extremamente valorizado pelos trabalhadores [migrantes], não só porque assegura a sobrevivência de suas famílias, mas também porque proporciona um padrão de consumo diferenciado do que tinham antes de migrar.
Essa argumentação é reforçada nas entrevistas realizadas com trabalhadores migrantes de Ererê, no Ceará, para São Paulo, realizadas por Carneiro e Silva (2019). Em contrapartida, os trabalhadores locais das regiões produtoras não são preteridos pela incapacidade de cortar cana, mas em virtude da recusa em submeterem-se a ritmos extenuantes em sua própria região. A migração transforma-se em estratégia de reprodução da exploração, que dificulta a organização e atuação de órgãos de fiscalização, dos Sindicatos e das ações do Ministério do Trabalho.
Ao longo do período analisado, as relações estabelecidas entre os trabalhadores e seus representantes legais e o Estado pautam-se pelo conflito e pela desigualdade de poder em momentos de negociação. Desse modo, o Estado, apesar de suas relações históricas com a classe patronal, é percebido pelos porta-vozes dos trabalhadores como espaço legítimo de luta, cujas decisões e estratégias jurídicas podem servir de fato para mobilizar as vítimas e enquadrar a justiça para exigir reparações, tal como pondera Agrikoliansky (2010).
Elaborada essas ressalvas, discutiremos uma das principais problemáticas do trabalho canavieiro, que afeta tanto migrantes quanto locais: o pagamento por produção. Demonstra-se como esse processo leva à subtração do trabalho produzido, engendrando processos a serem analisados posteriormente, como greves, paralisações e o adoecimento.
Pagamento e remuneração na agroindústria canavieira
O trabalho do cortador de cana apresenta distintas peculiaridades, assim como qualquer outra profissão no meio rural e/ou urbano. Apesar disso, o seu labor é marcado por ritmos diferentes de outras culturas como o café, a laranja ou a soja, com acentuado desgaste físico, mental e relações de dominação[8]. A rotina dos canavieiros se inicia ainda na madrugada, quando são organizados pelo empreiteiro em locais combinados para iniciarem a trajetória aos canaviais, costumeiramente feita em caminhões impróprios.
Empreiteiro é o termo utilizado para denominar o agenciador de mão de obra. Ele executa o papel de intermediário entre a usina e os trabalhadores, e é responsável pela contratação, abdicando a usina das responsabilidades legais. Em algumas regiões também é conhecido como “gato”[9].
Diferente de outras profissões em que os locais de trabalho são previamente combinados, eles não são informados em quais fazendas e talhões trabalharão até o momento de chegada no local. Os talhões – ou talhão – são áreas geralmente retangulares, onde os trabalhadores localizam-se para cortar a cana. Podem variar em questão de tamanho, tipos de cana, peso da matéria-prima, entre outras condições, e representam o espaço circunscrito à execução do trabalho. A cana a ser cortada (crua ou queimada) é possivelmente informada momentos antes pelos gerentes das usinas aos empreiteiros, impossibilitando prévia comunicação. As turmas[10], por outro lado, apresentam aspectos organizatórios baseados em relações de confiança e principalmente, produtividade.
Os horários de início da atividade costumam ser próximos em múltiplas regiões e pouco variados com o passar dos anos, e compostos por longas jornadas com poucos momentos de descanso. Setúbal (2007), ao analisar a região de Campos dos Goytacazes, município do interior do Rio de Janeiro, entre 2003 e 2004, indica a rotina de 12 horas de trabalho em condições insalubres nas usinas Santa Cruz e Cupim. Alves (2007) indica jornadas que variam de oito a 12 horas. Verçoza (2016, p. 132), em recente estudo em Alagoas, registra um cortador cuja jornada ocorreu das 5 às 21h, “iluminado por um farol de trator e caminhão no término da moagem”, resultando em adoecimento.
Em comum a essas regiões e temporalidades, encontram-se os fatos de não possuírem ambientes adequados para manutenção dos alimentos e água. A partir dos anos 1970, cunhou-se o termo “boia-fria” para designar esses trabalhadores, especialmente por consumirem suas “marmitas” em temperaturas frias, antes que o sol e o calor dos canaviais pudessem azedá-las. Registra-se a ausência de refeitórios ou coberturas próximos aos locais de trabalho, demonstrando o descaso dos patrões diante da saúde ou do bem-estar dos trabalhadores.
Luz et al. (2014), no estudo com cortadores migrantes do Ceará na região de São Paulo, evidenciam a continuidade dessa prática alimentar. Segundo as observações dos pesquisadores, ao chegarem ao canavial por volta das 6h30, os trabalhadores se posicionavam em frente às ruas de cana a serem cortadas, sobre seus galões de cinco litros de água e iniciavam a refeição fornecida pela usina. Conforme a entrevista concedida por um dos canavieiros: “A gente come metade da marmita agora e metade até umas 11 da manhã, quando a comida ainda não ‘azedô’. Sempre fazemos isso. E já dá uma energia pra cortar a cana de manhã...” (LUZ et al., 2014, p. 1321).
Esse constitui um dos múltiplos problemas enfrentados por esses sujeitos. Ainda mais grave é o formato de remuneração experienciado nos canaviais brasileiros. Assim, antes de descrever e analisar o trabalho per si, cabe destacar que a remuneração por produção – vigente ainda presentemente – nem sempre foi realidade nos canaviais brasileiros, tendo se propagado a partir dos anos 1960, alterando o ritmo e a intensidade da tarefa (GUANAIS, 2018). Anteriormente, a remuneração poderia ser contabilizada por feixes de cana. Naquela lógica, um feixe com “número x” equivalia ao valor estabelecido. Portanto, cortando 100 feixes, por exemplo, o trabalhador conseguia multiplicar e saber o salário a ser recebido[11].
A defesa do corte por feixe de cana – e a crítica do pagamento em tonelada – foi registrada por Sigaud (1978) ao entrevistar um antigo morador de fazenda da Zona da Mata pernambucana, pois, segundo ele, nesse formato o trabalhador sabia quanto receberia no final da jornada:
Porque o corte de cana ... Sabe quando é que os pobres brasileiros comiam um bocado? Quando cortavam cana por cento, que não tinha furto. Cortavam cana por cento, quando faziam o centinho deles já sabiam que tinham ganhado. Mas agora, esse negócio dessas balancinhas de São Miguel que usaram, é de 6 às 6h e se não for homem mesmo não faz o salário (p. 57).
Após 1960, o pagamento por produção, cuja remuneração se faz majoritariamente por tonelada, reestrutura como a cana é cortada pelos trabalhadores. Esse formato se assemelha ao trabalho por peça, historicamente existente, conforme indica Marx (2011).
Consoante o pensador alemão, o salário por peça não é determinado como no salário por tempo, cujo cálculo incide no valor diário da força de trabalho sobre a jornada de trabalho em número de horas, mas sim pela capacidade de produção (MARX, 2011, p. 411). Diferente do trabalho por salário, em que o valor da peça é medido pelo tempo de trabalho nela incorporado, no salário por peça é medido o trabalho gasto pelo trabalhador pelo número de peças produzidas. Ou seja, o trabalhador recebe conforme a quantidade de produtos fabricados em um tempo determinado. No caso específico desse estudo, por toneladas cortadas ao longo da jornada.
Para o autor, o salário por peça é “a fonte mais fértil de descontos salariais e de fraudes capitalistas” (MARX, 2011, p. 412). Além disso, a qualidade e a intensidade do ritmo executado pelo trabalhador são controladas pela sua própria forma-salário, tornando a vigilância ou a supervisão do trabalho menos necessária. Em termos práticos, os canavieiros dependem de menos vigilância, já que sua remuneração e metas de produtividade determinam a sua permanência no emprego ou não. Por outro lado, há de se considerar que menos vigilância não significa menos utilização de recursos de poder como humilhações, xingamentos e deboches com vistas a incrementar a produção, geralmente feita pelos gerentes das usinas, administradores e/ou empreiteiros[12].
Em seu estudo sobre o processo de formação do capital, Marx (id., ibid.), indica que essa forma de pagamento facilita o “subarendamento do trabalho” (subletting of labour), que significa a introdução de um intermediário entre o trabalhador e o contratante, cujos ganhos advêm da diferença entre o preço do trabalho pago pelo capitalista e a parte recebida pelo trabalhador. Neste campo de pesquisa, o papel relaciona-se aos empreiteiros, aliciadores da mão de obra, conforme já indicado em notas anteriores. Logo, quando a contratação é feita por intermediários, é retirada uma porcentagem do valor da mão de obra do trabalhador, direcionada aos empreiteiros.
Especificamente no caso brasileiro, o empreiteiro é uma figura antiga que pode assumir perfis diversos. No geral, especialmente no contexto europeu e estadunidense, a terceirização ou a introdução de intermediários na contratação é um processo intensificado com o neoliberalismo. No entanto, cabe destacar que não surge com ele.
Como apontam Thébaud-Mony e Druck (2007, p. 27), a terceirização é uma prática presente desde a Revolução Industrial, no século XIX, continuada durante o auge do fordismo e do welfare state, principalmente nos setores industrial, de extração de carvão e portuários. Em consonância com nossa hipótese acerca da presença de práticas prejudiciais aos trabalhadores no Brasil anterior ao período do neoliberalismo, as autoras (idem) evidenciam que a origem da terceirização/subcontratação no Brasil está no trabalhador rural, por meio do sistema dos “gatos”, conforme mencionado.
Retornando ao caso dos canavieiros, o pagamento por produção apresenta ainda outras semelhanças ao trabalho por peça, pois em ambos o interesse pessoal do trabalhador, ao empregar sua força de trabalho, é aumentar sua remuneração, levando à intensificação do ritmo. Como não correspondem a padrões, já que cada ser humano possui distintos corpos e capacidades físicas e psicológicas, são criadas diferentes remunerações para execução de tarefas iguais.
No que diz respeito à receita real surgem, aqui, grandes diferenças conforme os distintos níveis de destreza, força, energia, resistência etc. dos trabalhadores individuais (MARX, 2011, p. 413).
Neste sentido, a individualidade leva a um sentimento de liberdade e independência “e o autocontrole dos trabalhadores; por outro lado, sua concorrência uns contra os outros” (MARX, 2011, p. 413). No universo canavieiro, esse fenômeno é percebido como os cortadores “super-homem da produção” (NOVAES, 2007, p. 97), aqueles que extrapolam os limites dos seus corpos para aumentar a tonelada de cana cortada, distanciando-se da média alcançada por outros canavieiros[13].
Portanto, ao criar uma discrepância entre sua produção e a do restante da turma, pode sofrer represálias para reduzir o ritmo do trabalho, porque sua condição individual pode levar à demissão daqueles incapazes de acompanharem o ritmo. Um desses casos é analisado por Novaes (2007):
Vejamos um caso que registramos durante a pesquisa de campo: em uma usina foram contratados 5.000 trabalhadores. Após o primeiro mês de trabalho, foi realizada a primeira seleção, a primeira “poda”, em que foram descartados os 1.500 trabalhadores menos produtivos, isto é, aqueles que não conseguiram atingir a média de produção da turma. No segundo mês, uma nova seleção foi realizada, sendo eliminados mais 1.000 trabalhadores, todos com produção individual abaixo da média da turma. Por meio desse tipo de seleção, a usina seleciona os trabalhadores mais produtivos e chega a realizar com 2.500 trabalhadores a mesma meta de produção estabelecida, no início da safra, para 5.000 trabalhadores (p. 97, grifos nossos).
O processo percebido por Novaes (id., ibid.) de execução da meta com número reduzidos de canavieiros é constitutivo do pagamento por produção, com ocorrências semelhantes ao por peça. Marx (2011) aponta:
o salário por peça é rebaixado na mesma proporção em que aumenta o número das peças produzidas durante o mesmo período de tempo ou, portanto, em que diminui o tempo de trabalho empregado na mesma peça (p.414).
Em correspondência, independentemente do número de trabalhadores ou da meta estipulada, quanto maior for a produção na jornada de trabalho, menor a remuneração. Quanto mais canas forem cortadas por menos trabalhadores, sem alteração da jornada em horas, menor a remuneração. Nessa lógica, a remuneração por produção facilita o roubo de diversas espécies, o mais comum deles o da mensuração dos metros cortados e da balança adulterada, registrados por pesquisadores como Paixão (1994), Sigaud (1978) e Alves (1991)[14].
Em determinadas atividades o trabalhador consegue precisar quanto seu empregador ganhará mediante o cálculo das peças produzidas subtraído o valor pago a ele. No universo canavieiro, no entanto, essa matemática não é viável, já que a remuneração é baseada em toneladas e convertidas para cana no final do dia. O trabalhador não acompanha a pesagem, seja porque já está fora do seu horário, porque as balanças são demasiadamente longe dos canaviais, por ausência de permissão ou pelo fato de que acompanhar a pesagem seria reduzir o salário diário que se baseia na produção[15]. Isto demonstra, novamente, a arbitrariedade na remuneração.
Uma das possibilidades de medir o trabalho executado pelo cortador é através da quantidade de metros. Outra é através do peso da cana cortada. Para os trabalhadores somente o metro lhe assegura ter, ao final e no decorrer da jornada, controle da sua produção. Isto porque os trabalhadores não dispõem de balanças no eito, a cana é transportada e pesada na usina. Para os usineiros, de outro lado, a melhor forma de remunerar os trabalhadores é pelo peso da cana cortada, porque ele, enquanto produtor de cana, controla a sua produção pelo peso de cana produzida. O peso da cana numa certa área (tonelada por hectare) também é a medida de produtividade mais difundida no setor (ALVES, 1991, p. 192).
Reis (2012) expõe que o pagamento por produção dos cortadores de cana do Complexo Agroindustrial Canavieiro Paulista (CAI) é o mais cruel e coercitivo[16], pois o trabalhador desconhece o valor da “peça” tanto antes, quanto depois da execução da atividade: “Isso porque, em muitas usinas, o preço do metro de cana cortada não é divulgado para o cortador de cana antes de começar o trabalho e, quando isso acontece, esse valor não passa de uma estimativa...” (id., ibid., p. 85)[17]. Ademais, a conversão do valor da tonelada por metro é feita nas usinas, sem acesso por parte dos trabalhadores, como já citado.
Do ponto de vista dos usineiros, a substituição da lógica do pagamento por feixe ou metros por toneladas pode ser compreendida, além da destituição da produção do trabalhador, como um instrumento de controle da mão de obra. Novamente, o pagamento por produção na agroindústria canavieira, ao converter metros por toneladas, retira do indivíduo a capacidade de calcular sozinho o seu ganho diário. Logo, favorece práticas de ameaças, coações e rivalidades. Não sabendo quanto se ganha, dificilmente se percebe a hora de parar de trabalhar, sobrecarregando o corpo.
Estudos como os de Alves (2008, 2006)[18], Novaes (2007), Silva (2013), Verçoza (2016) indicam que a intensificação do trabalho pelo pagamento por produção se correlaciona ao adoecimento físico e mental. Segundo os autores, a necessidade de intensificação do corte para superar a meta estipulada leva ao desenvolvimento de diversas doenças, traumas e acidentes, dentre elas:
dermatites, conjuntivites, desidratação, câimbras, dispneia, infecções respiratórias, oscilações da pressão arterial, ferimentos e outros acidentes (inclusive os de trajeto). Além destas cargas laborais, devemos destacar aquelas de caráter biopsíquicos, que configuram padrões de desgaste manifestos através de dores na coluna vertebral, dores torácicas, lombares, de cabeça e tensão nervosa (stress), além de outros tipos de manifestações psicossomáticas que podem se traduzir, principalmente, por quadros de úlcera, hipertensão e alcoolismo (ALESSI; NAVARRO, 1997, p. 119).
As situações mencionadas são constitutivas do sistema capitalista, que explora à medida que expropria o trabalhador de suas condições mentais, físicas, morais e da própria terra. Essa expropriação é acompanhada de um processo de evolução tecnológica, científica e organizacional. Primeiro, com a substituição da mão de obra humana pelas máquinas, segundo, pela introdução de novos padrões comportamentais e produtivos no seio da empresa, com estabelecimento de métricas, remunerações e premiações com objetivos de recompensar o esforço sobre-humano dos canavieiros.
O que interessa pontuar é a correlação de relações de trabalho arcaicas dentro de um setor modernizado, a agroindústria canavieira. Prado (2008, p. 44), ao pesquisar flexibilização e novas estratégias de intensificação do trabalho das usinas de Ribeirão Preto, nos anos 1990, indica a presença de posturas administrativas que procuram racionalizar os recursos técnicos e humanos, criando um envolvimento dos trabalhadores com as metas organizacionais.
A nova “roupagem” do capitalismo a partir do final dos anos 1960 exigiu, portanto, que a modernização viesse acompanhada de novas posturas, restabelecendo o perfil adequado de trabalhador, associando-as aos interesses da empresa e difundindo uma falsa preocupação com a saúde e o bem-estar. Evidentemente, essas relações não se concretizaram, pelo contrário, incrementaram as explorações e o aumento da produtividade diária de cana cortada em todo país.
Enquanto na Europa os sindicatos se mobilizavam para garantir a manutenção do direito com o avanço das políticas neoliberais, no campo brasileiro as condições dos assalariados nem chegavam a ser regulamentadas de forma precisa. Havia, deste modo, um descompasso entre as lutas, e muitos dos processos iniciados nos anos 1990 já eram frequentes aqui.
A mecanização encontra um papel fundamental para o agravo do exercício do trabalho. Como apontam Prado (2008) e Alves (1991), após esses equipamentos, que reduziram o número de braços humanos, as usinas exigiam que os trabalhadores executassem funções para além das suas e aumentassem o número de toneladas diárias. Com o risco maior de demissão, foram obrigados a se ajustar às exigências do capital e perderam poder de negociação.
Dito isso, pondera-se que a transformação na base técnica da agricultura é um processo de subordinação da natureza ao capital (GRAZIANO DA SILVA, 1998, p. 3). Nesse processo, a agricultura está, como setor, subordinada ao capital e sendo, ela própria, um ramo no qual os capitais são aplicados, com venda de maquinários e insumos, ao passo que compra as mercadorias lá produzidas (id., ibid., p. 4). Graziano da Silva (1998) demonstra que o processo de industrialização da agricultura não é apenas as transformações decorrentes da maior integração industrial no campo, mas uma mudança do homem com a natureza e “também nas relações sociais de produção e com seus instrumentos e trabalho (ferramentas, máquinas e equipamentos, insumos e matérias-primas, entre outros)” (id., ibid.).
Por conseguinte, essas mudanças nas relações sociais de produção se refletem no trabalho diário dos canavieiros, seja por pagamentos injustos, roubos na pesagem de cana, clandestinidade dos contratos de trabalho, entre outras situações. Neste setor modernizado, constituído por complexas relações de produção, a integração dos capitais e a expansão tecnológica amplificaram a miséria, destituindo o trabalhador da terra e destruindo antigos contratos de trabalho que davam acesso a certos direitos, como o colonato.
Analisamos, a seguir, como é executado o trabalho de corte e quais as principais problemáticas envolvidas.
Corte e adoecimento na agroindústria canavieira
O corte da cana queimada[19] pode ser realizado no formato de cinco ruas (linhas de cana), da seguinte forma: com um dos braços, abraça-se um número determinado de cana. Com o outro, executam-se golpes certeiros de podão rentes ao chão para evitar perda de sacarose ou deixar “tocos”.[20]
Com o feixe nos braços, leva-se ao centro de uma das ruas para serem amontoadas e posteriormente recolhidas por máquinas ou animais. Novamente, retorna-se ao ponto de partida e se repete o processo. Segundo o importante estudo de Alves (2006), canavieiros que cortam 6 toneladas de cana em um eito de 200 metros de comprimento e “por 6 metros de largura, caminham durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros e despendem aproximadamente 20 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 66.666 golpes por dia” (ALVES, 2006, p. 94). Considerando ainda que, além de abraçar a cana para golpeá-la, precisa transportar e amontoar os feixes cortados numa linha central, “ele não apenas anda 4.400 metros por dia como transporta nos braços 6 toneladas de cana em montes de aproximadamente 15kg a uma distância que varia de 1,5 a 3 metros” (id., ibid.).
Ademais, no decorrer desse período, os canavieiros são expostos ao sol, calor, fuligem, poeira e fumaça por um período entre 8 e 12 horas de trabalho durante todos os meses da safra. Essas condições levam a envelhecimentos precoces, probabilidade de desenvolver problemas de pele e perda de líquidos, podendo causar dolorosas câimbras.
Verçoza (2016) relata um desses casos de câimbras, conhecidas na região Nordeste do país como “cangurus”, e em São Paulo como “birôla”. O nome decorre da posição associada ao animal australiano, cujas patas encurvam-se. Nos momentos de acometimento do “canguru”, os trabalhadores têm seus membros retidos e contorcidos, tal como o animal. Segundo as entrevistas realizadas pelo autor com médicos e canavieiros, é um processo que domina todo o corpo e pode levar à morte, em virtude do alto nível de desgaste físico e desequilíbrio entre a reposição através de alimentos e líquidos.
Segundo o médico de uma usina alagoana, o “canguru” pode resultar em “morte, porque é um distúrbio hidroeletrolítico, e isso mexe com as células, que são as unidades fundamentais, e se não for atendido, hidratado e não tiver repostos os eletrólitos, pode acontecer” o óbito (p. 125).
Conforme demonstra Gomes et al. (2001), após o final de uma jornada de oito horas um trabalhador poderá ter realizado de 10 a 12 mil movimentos com os membros superiores, além da curvatura da coluna vertebral, a lombar e da articulação dos ombros. A intensidade do trabalho aumenta ainda as possibilidades de acidente, já que os equipamentos costumam ser insuficientes ou ineficientes. Há ainda o risco de acidente pela exaustão, causando desatenção. Segundo Novaes (2007, p. 172), ao cortar 10 toneladas de cana por dia “os riscos de acidentes de trabalho aumentam, pois, o corpo extenuado perde a precisão dos golpes do facão na cana, e as pernas e a mão involuntariamente viram alvos”.
Inevitavelmente, o ritmo intenso desses “homens-máquinas” provoca o adoecimento. Vilela et al. (2015, p. 36), ao entrevistarem migrantes cearenses trabalhando no corte de cana em São Paulo, na região de Piracicaba, registra uma curiosa fala: “Quem trabalha com cana fica uns dez anos mais velho, cada safra, pode por aí, uns três anos a mais gasto na vida.” A percepção deste trabalhador sobre os efeitos do corte no seu corpo reitera a dimensão árdua e a degradação rápida após as safras. Chegam ao final com corpos exaustos e dores. No caso dos migrantes, impossibilitados de executarem outra tarefa nas suas cidades de origem até a melhora.
Nos casos mais graves, em que o adoecimento o torna inapto para o trabalho, outras dimensões operam sobre aquele corpo considerado inútil. Dejours (1987), pesquisadora da psicopatologia do trabalho,[21] demonstra como a associação entre doença e vagabundagem faz com que sintam vergonha da doença. É um modo de dominação que esconde o produto dos esforços empenhados na produção capitalista.
Dessa maneira, a doença atravessa a questão do trabalho ou do emprego. É o avesso do trabalho, a ponto de a falta de trabalho se tornar um sinônimo de doença, conforme aponta Dejours (1987, p. 33). Para os canavieiros, essa realidade se apresenta de forma semelhante. Estar doente é ser visto como incapaz, à margem da sociedade e indigno.
Após algumas safras, o bagaço é o trabalhador, descartado por não atingir as metas estabelecidas e sem condições de realizar trabalhos manuais. Alguns, sem alternativa, automedicam-se.[22] A angústia do corpo improdutivo atinge não apenas os trabalhadores, mas seus dependentes. Existe nesse processo uma lógica ainda mais cruel, já que a ilegalidade do trabalho canavieiro impede o acesso a benefícios sociais como aposentadoria, auxílio-doença. Portanto, ficam à margem da proteção social, enquanto os patrões substituem a mão de obra por trabalhadores oriundos de outras regiões, com a mesma necessidade de sustentar a família, num ciclo de exploração e adoecimento.
Desse modo, enquanto o avanço do neoliberalismo promovia informalidade, contratos parciais, extensão das horas de trabalho, no campo brasileiro essas situações sempre estiveram presentes, pois este pauta-se pela ausência de regulação e por uma constante ausência de direitos trabalhistas. Em resumo, enquanto nas maiores potências houve uma desregulamentação dos direitos, aqui a norma é sua própria abstenção.
Para os patrões, o adoecer possui significado distinto. Partindo de suas concepções conservadoras de mundo, com prioridade do lucro acima das condições de vida dos canavieiros, opera um discurso de acusação, no qual a doença é vista como “preguiça” e/ou “vagabundagem”. Conforme indica Bruno (2019), a humilhação é um recurso de poder utilizado para desconstruir narrativas de exploração e dominação. Nessas narrativas, a situação de fome e opressão é culpa dos próprios dominados, cuja “má vontade” e “inaptidão” para o trabalho impossibilitam sua ascensão social. Como já mencionado ao longo deste trabalho, essa narrativa não corresponde à realidade, visto que os roubos e a expropriação, intrínsecos às relações do setor, impedem condições dignas de remuneração.
Barreto e Heloani (2015, p. 546) destacam como as relações laborais possibilitam compreender as dinâmicas do mundo do trabalho, indicando que: “são relações laborais que explicitam a plenitude das relações sociais competitivas, individualistas, consumistas, sem respeito ou reconhecimento ao fazer do outro”. Nesse mundo capitalista, o ambiente de trabalho não admite críticas às jornadas extenuantes, não tolera a associação entre trabalho e adoecimento, desconsidera direitos trabalhistas como básicos e fundamentais para reprodução da vida e do trabalho. Esses processos, evidentemente, são acentuados com o neoliberalismo e o papel central da produtividade.
Apesar disso, o adoecimento deve vir acompanhado de uma subjugação completa à dominação. O trabalhador canavieiro precisa – para seus patrões – adoecer silenciosamente, sem acusações ou reclamações. Caso contrário, está sujeito ao mundo do desemprego, podendo ser estendido aos seus familiares por contrariar a lógica patronal. Barreto e Heloani (2015) denominam processos semelhantes como “intolerância social”, em que:
os adoecidos e improdutivos são categorizados e considerados “não confiáveis”, e, por isso, se tornam indesejáveis no espaço laboral. São rejeitados mediante o mais ultrajante escárnio da nossa época, ou seja, junto aos “mais velhos”, aos “críticos”, aos “dirigentes combativos”, aos que “não se submetem às práticas ilícitas” etc., compõem o “time” que ameaça o status quo (p. 547).
Percebemos ao longo do trabalho que esses processos como expropriação, roubo, exploração e adoecimento não são exclusivos da agroindústria canavieira, mas, neste setor, diante da sua ausência de regulação, tornam-se práticas comuns e agravadas. Apontamos, a seguir, uma reflexão final (mas não finalizada) acerca da situação brasileira em comparação a nações que passaram por processos de desregulamentação do trabalho.
Considerações finais
Este artigo pretendeu evidenciar uma série de situações às quais os canavieiros estão submetidos no regime de trabalho assalariado, cujas condições foram agravadas pela modernização conservadora, antes mesmo da introdução das políticas neoliberais no Brasil. Durante esse percurso, acreditamos ter demonstrado que a superexploração do trabalho, o pagamento por produção e altos níveis de produtividade não são exclusivos dos países que tiveram seu Estado de bem-estar social desmontado. Aqui, possuem uma trajetória longínqua que perpassa as relações de trabalho no setor canavieiro, além de comporem concepções de mundo da elite agroindustrial.
Destacamos que superexploração é uma tendência das economias capitalistas, não devendo ser vista como uma exclusividade do setor agroindustrial canavieiro nem como a única fonte dos problemas dos trabalhadores. A precariedade das formas de contratação por intermédio de empreiteiros e contratos informais auxiliam no incremento da riqueza capitalista e no empobrecimento dos trabalhadores, como demonstrado.
O universo desses sujeitos envolve múltiplas questões que não foram abordadas neste trabalho em razão dos seus objetivos, mas que estão inscritas nas lógicas de acumulação do capital através de baixas remunerações, contratos informais e/ou intermitentes, como a migração temporária para o corte nas regiões produtoras, trabalho infantil, análogo à escravidão, entre outras situações.
Como aponta Han (2015), no século XXI a sociedade vive uma disciplina marcada pelo “não ter o direito” nas diversas esferas. Esses direitos, em alguns locais, nunca chegaram a existir, ou se existiram, não foram devidamente considerados, conforme destacamos.
A produtividade se concentra como eixo das relações sociais, criando uma sociedade pautada no desempenho e na desregulamentação dos direitos. Porém, mais do que a desregulamentação dos direitos trabalhistas, a estrutura desse setor nega o acesso à cidadania plena, a manifestação política e social, tal como também ocorreu com os trabalhadores europeus.
Nosso objetivo não consiste em desqualificar os desmontes sofridos por outras categorias de trabalhadores, mas evidenciar que o setor analisado vivenciou e vivencia impactos nas suas condições de vida e trabalho antes mesmo do projeto neoliberal. Entendemos que este consegue alterar as próprias percepções do indivíduo sobre seu desempenho, criando culpa por não atingir os níveis estratosféricos de produtividade, improváveis até para máquinas, ou por adoecer, como também ocorre nos canaviais.
O capital, para manter os níveis de dominação elevados o suficiente para impedir manifestações e oposição ao apagamento do indivíduo, imprime forças no boicote a movimentos sindicais e/ou greves, enquanto esgota as forças psicofísicas dentro e fora do ambiente laboral. Para além, cria mecanismos de “inclusão” desses sujeitos quanto às metas organizacionais da empresa, mobilizando-os e engajando-os em prol da produtividade, que por consequência desgasta e reduz o próprio tempo de vida.
Na agroindústria, isso ocorre por meio do “podão de ouro”, cujas estratégias são distribuição de brindes, sorteios de motos, bicicletas, televisão, promovendo a competição e desestimulando a formação de uma consciência de classe, ou ao menos de um grupo coeso. No setor empresarial, após a década de 1980, essas situações ocorreram com a difusão das metas empresariais, das promoções por lucros alcançados, dos planos de carreira baseados em excessos de trabalho e pressões múltiplas.
Como aponta Vasconcelos (2020, p. 68), “o desmedido avanço neoliberal impõe uma ideologia assentada em expectativas superiores de desempenho, determinadas e exigidas pelos agentes do capital, qual seja, da qualidade total, da excelência e subalternidade...”. Este projeto, que rejeita a estrutura produtiva fordista e taylorista, tensiona o indivíduo ao máximo, normaliza a superexploração, minimiza os efeitos do trabalho sobre o corpo e impossibilita uma resistência coletiva.
Lucrar a todo custo se transforma em uma direção ou em uma metáfora com o campo de estudos, uma colheitadeira impetuosa que opera sistematicamente para esse fim. No caminho, desconstrói mecanismos políticos, sociais e econômicos desfavoráveis ao seu objetivo, leva ao máximo a superexploração humana, tensiona os limites do corpo através de modernas estratégias organizacionais. O neoliberalismo e a modernizada agroindústria, por conseguinte, convivem com o moderno e o arcaico, e desse equilíbrio passam a depender para continuar moendo cana e transformando o trabalhador em bagaço.
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Filipe Moreira de Azeredo Tavares Doutorando e Mestre em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA/UFRRJ e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal Fluminense. Faz parte do grupo de pesquisa Movimentos Sociais, relações de poder e políticas no campo (NMSPP). Realiza pesquisa sobre Agroindústria Canavieira no Rio de Janeiro, com foco nas condições de vida e trabalho dos cortadores de cana; História do Sindicalismo Brasileiro e História da Agricultura. E-mail: filipe.tavares3@live.com ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/1233924232108798 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4943-5585 |
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 16, 1-26, e022004, jan./dez. 2022 • ISSN 1984-9834
[1] Doutorando e Mestre em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA/UFRRJ e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal Fluminense. Faz parte do grupo de pesquisa Movimentos Sociais, relações de poder e políticas no campo (NMSPP). Realiza pesquisa sobre Agroindústria Canavieira no Rio de Janeiro, com foco nas condições de vida e trabalho dos cortadores de cana; História do Sindicalismo Brasileiro e História da Agricultura.
[2] Na introdução do livro de Chomsky (2002), McChesney evidencia que o neoliberalismo é o paradigma político e econômico que define nosso tempo. Para ele, o neoliberalismo “consiste em um conjunto de políticas e processos que permitem a um número relativamente pequeno de interesses particulares controlar a maior parte possível da vida social com o objetivo de maximizar seus benefícios individuais. Inicialmente associado a Reagan e Thatcher, o neoliberalismo é a principal tendência da política e da economia globais nas últimas duas décadas, seguida, além da direita, por partidos políticos de centro e por boa parte da esquerda tradicional. Esses partidos e suas políticas representam os interesses imediatos de investidores extremamente ricos e de menos de mil grandes empresas” (CHOMSKY, 2002, p. 3).
[3] A autora nesta obra analisa detalhadamente as respostas dos trabalhadores perante a situação da Grã-Bretanha nos anos 1970. Ao analisar múltiplas greves, estabeleceu um mapa político dos confrontos. Evidencia que: “[...] In 1978-79 workers engaged in a series of strikes in protest against the then Labour government’s wage limits. These controls, or incomes policies, were not uncommon in post-war Britain, but for British trade unions, three years of wage restraint, coupled with inflation depressing workers’ wages, made the rank-and-file membership increasingly less likely to abide yet another year of such a policy. Towards the end of 1978, Labour Prime Minister James Callaghan’s imposition of a 5 per cent wage limit proved particularly galling, and trade unions were in a position to effectively resist the government’s efforts. The first rupture came in September 1978, when Ford workers went on strike for an increase of 17 per cent, effectively breaking the income policy. Overtime bans among oil tanker drivers and strikes in road haulage soon ensued...” (LÓPEZ, 2014, p. 198)
[4] Marini (1972, 2000) expande a análise de Marx sobre a equivalência entre o salário e a força de trabalho. Para o autor, o aumento da jornada laboral e da intensidade do trabalho não necessariamente acarretará aumento da remuneração dos trabalhadores. Segundo ele: “Marx tiene su motivo para conceptualizar de esta manera, a la explotación del trabajo en una economía capitalista, ya que parte del supuesto teórico de que la fuerza de trabajo se remunera siempre a su justo valor, no para cada individuo pero sí como una tendencia para la clase. Ahora bien, ella no representa tan sólo una premisa teórica, sino que tiene también una validez histórica. Si consideramos la evolución de los salarios en los países industriales, constatamos que se observa allí una tendencia permanente de los salarios a mantenerse cercanos al valor real de la fuerza de trabajo. Pero cuando desplazamos nuestro enfoque hacia las economías dependientes vemos que eso no es así; no podemos partir en absoluto, en el análisis de una economía dependiente, afirmando que allí la fuerza de trabajo se remunera a su justo valor. Eso no es cierto; por lo contrario, lo característico en una economía dependiente es precisamente que la fuerza de trabajo se remunera siempre debajo de su valor” (MARINI, 1972, s/p).
[5] Guanais (2018, p. 303) indica isso em seu trabalho, apontando que: “[...] o pagamento por produção estimula tanto o aumento da intensidade do trabalho quanto o prolongamento da jornada laboral, fazendo com que no processo produtivo do corte manual de cana ambos os procedimentos estejam associados, contribuindo sobremaneira para o aumento do gasto de energias vitais e para o maior desgaste dos assalariados rurais”.
[6] Delgado (2010, p. 29) indica que esse processo de modernização promovido pelos militares durante o período da ditadura favoreceu setores específicos do capitalismo. Segundo o autor: “Por exemplo, na década de 1970, o governo da ditadura militar promoveu um processo de modernização conservadora que concebeu o rural como sinônimo de agrícola e o desenvolvimento rural como idêntico à modernização agrícola, produzindo transformações socioeconômicas no meio rural cujos efeitos foram bastante penosos para os trabalhadores rurais e muito favoráveis às elites agrárias, agrícolas e agroindustriais.
[7] O autor evidencia que: “Essa modernização, que se fez sem que a estrutura da propriedade rural fosse alterada, teve, no dizer dos economistas, ‘efeitos perversos’: a propriedade tornou-se mais concentrada, as disparidades de renda aumentaram, o êxodo rural acentuou-se, aumentou a taxa de exploração da força de trabalho nas atividades agrícolas, cresceu a taxa de autoexploração nas propriedades menores, piorou a qualidade de vida da população trabalhadora do campo. Por isso, os autores gostam de usar a expressão ‘modernização conservadora’” (PALMEIRA, 1989, p. 87).
[8] Indicamos que as situações mencionadas também estão presentes em outras culturas, como partes constitutivas do trabalho rural, historicamente marcado pela opressão. Nosso objetivo é apenas destacar o setor analisado neste artigo.
[9] Os cargos relativos às usinas podem ser encontrados nas análises de Ribeiro (1987) e do autor (2021).
[10] “Turma” ou “turmas” é o coletivo relativo a um conjunto de canavieiros. Ao se apresentarem reciprocamente ou em outros contextos, podem acionar a identidade de pertencer a “turma de fulano” ou “turma de ciclano”.
[11] Essa análise é reforçada por Guanais (2018, p. 110), indicando: “Importante mencionar que até o final da década de 1950 e início da década de 1960 a atividade dos canavieiros era paga pelo número de feixes de cana que cada um cortava. Como cada feixe possuía entre 20 e 25 varas de cana, era simples para o trabalhador controlar a quantidade de trabalho que havia realizado.”
[12] Os mecanismos de dominação executados pelos funcionários das usinas são analisados por Ribeiro (1987).
[13] Hun (2020) indica a exploração da liberdade como gerada pelo neoliberalismo. O autor demonstra que o neoliberalismo transforma a exploração pelo outros em autoexploração sem classe. Nesse processo, quem fracassa por não atingir as metas de desempenho estabelecidas, em vez de culpar o sistema pelas imposições, passa a se envergonhar. Apesar disso, evidenciamos que a autoexploração e a concorrência entre sujeitos da mesma classe ou grupo social não é exclusiva do período neoliberal, mas é por ele intensificado. Logo, esses acontecimentos podem ser lidos como elementos necessários para reprodução do capitalismo como sistema.
[14] O autor aponta os benefícios para os usineiros ao empregarem essa forma de pagamento: “por tonelada, apenas os patrões controlam o resultado do trabalho, dado que são os usineiros que dispõem da balança. Com isto os trabalhadores estão sujeitos a roubos e enganos. Com o pagamento por tonelada de cana é bastante comum insatisfações dos trabalhadores com o ganho recebido, que, via de regra, é menor do que o trabalhador avalia que produziu” (ALVES, 1991, p. 192).
[15] A ausência do controle da produção é objeto de luta em greve dos canavieiros na década de 1980, com exigência do comprovante de produtividade para acompanhamento do salário a ser recebido. Essa reivindicação consta, por exemplo, nas greves de Pernambuco (1979), Guariba (1984), Campos dos Goytacazes (1984). Cabe ressaltar o caráter combativo desses trabalhadores, que apesar de não serem objetos de reflexão deste artigo, devem ser indicados.
[16] Ressaltamos, apesar disso, que a situação não é exclusiva dessa região e pode ser presenciada em grande parte das usinas do país.
[17] Essa situação também é registrada por Guanais (2018) ao entrevistar canavieiros, reclamando sobre os fiscais de turma raramente passarem o peso da cana cortada antes de iniciarem o corte.
[18] Neste estudo, o autor defende que: “Em nossa opinião, as mortes por excesso de trabalho são decorrentes do processo de trabalho e do pagamento por produção, que leva os trabalhadores a terem de assumir o ônus dos baixos salários recebidos. Desta forma, o fim das mortes por excesso de trabalho requer mudanças no processo de trabalho e o fim imediato do pagamento por produção no corte de cana. Esse pagamento deve ser substituído pelo princípio universal do pagamento por tempo de trabalho e da jornada fixada em horas de trabalho” (ALVES, 2008, p. 12).
[19] A técnica de queima da cana-de-açúcar é realizada por dois motivos principais. O primeiro se relaciona ao caráter cortante da folha de cana “em pé”, capaz de ferir gravemente a mão dos trabalhadores. O segundo, relaciona-se à existência de animais peçonhentos, principalmente cobras, nesse cultivo.
[20] O peso do corpo, somado às botas de proteção, joelheiras de metal e luvas – quando disponibilizadas adequadamente –, exige maior força física e aumenta a possibilidade de acidente.
[21] A psicopatologia do trabalho deve estudar o que acontece com a vida do trabalhador desprovido de atividade intelectual pela organização científica do trabalho. Existe um choque entre o indivíduo, dotado de personalidade e a organização do trabalho, portadora de injunção despersonalizante. É dessa relação que emerge o sofrimento e a vivência que a psicopatologia tenta esclarecer (DEJOURS, 1987, p. 43).
[22] A psicopatologia do trabalho deve estudar o que acontece com a vida do trabalhador desprovido de atividade intelectual pela organização científica do trabalho. Existe um choque entre o indivíduo, dotado de personalidade e a organização do trabalho, portadora de injunção despersonalizante. É dessa relação que emerge o sofrimento e a vivência que a psicopatologia tenta esclarecer (DEJOURS, 1987, p. 43).