Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 15, 1-18, e021014, jan./dez. 2021 • ISSN 1984-9834

Entrevista • Série Especial • Acesso aberto

Entrevista sobre Raimundo Santos (in memoriam)

Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes

Interview about Raimundo Santos (in memoriam)
Rural studies in perspective: people, knowledge, institutions and networks

A Revista IDeAS tem a satisfação de publicar mais uma entrevista da nossa série especial, a qual objetiva promover o diálogo com pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam aos estudos sobre o mundo rural em suas múltiplas interfaces. Desta vez, entrevistamos ex-orientandos do Dr. Raimundo Santos (in memoriam), professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Raimundo Santos foi relembrado a partir de sua trajetória acadêmica, seu exílio, sua inserção no CPDA e suas colaborações para o pensamento social brasileiro, principalmente sobre o mundo rural, além de serem evidenciadas suas análises de conjunturas políticas.

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Revista IDeAS is pleased to publish another interview of our special series that aims to promote dialogue with researchers who are dedicated to studies on the rural world in its multiple interfaces. Our interviewees were advised by Dr. Raimundo Santos (in memoriam), professor and researcher at the Graduate Program in Social Sciences in Development, Agriculture and Society (CPDA), at the Federal Rural University of Rio de Janeiro. Raimundo was remembered based on his academic trajectory, his exile, his insertion to the CPDA and his contributions to Brazilian social thought, mainly to the rural world, besides to highlight his analysis of political situations.

Citação sugerida

VANCONCELLOS, Dora Viana; FONSECA, Bruno Costa da; ALMEIDA, Leandro Cabral de. Entrevista sobre Raimundo Santos (in memoriam) da Revista IDeAS. Série Especial – Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 15, p. 1-18, e021014, jan./dez. 2021.

Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).

Data da entrevista:  14 ago. 2021                                                                   Publicação: 30 nov. 2021


Série Especial

Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes

A Revista IDeAS tem a satisfação de publicar mais uma entrevista da nossa série especial “Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes”. Inaugurada com uma entrevista com a Profa. Dra. Eli de Fátima Napoleão de Lima[1], a série tem o objetivo promover o diálogo com pesquisadoras e pesquisadores que vêm se dedicando aos estudos sobre o mundo rural em suas múltiplas interfaces.

Consideramos importante conhecer um pouco da trajetória pessoal e profissional dessas pessoas que se dedicam a refletir sobre as interpretações, implicações, desafios e perspectivas que este vasto campo de estudos nos apresenta, assim como o contexto intelectual e institucional de sua produção científica. Deste modo, procuramos nos debruçar sobre os itinerários do dinâmico campo de estudos rurais, atentando para as institucionalidades e redes que o constituem.

Desta vez, entrevistamos ex-orientandos do Dr. Raimundo Santos (in memoriam), memorável professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Participaram da entrevista Dora Vianna Vasconcellos, Bruno Costa da Fonseca e  Leandro Cabral de Almeida.

Raimundo foi relembrado a partir de sua trajetória acadêmica, seu exílio, sua inserção no CPDA e suas colaborações para o pensamento social brasileiro, principalmente sobre o mundo rural.

Boa leitura!



Entrevista sobre Raimundo Santos (in memoriam)

Entrevista concedida a Renner Coelho Messias Alves[2].

IDeAS: Como foi sua experiência acadêmica com o Prof. Raimundo?

Bruno Costa da Fonseca[3]: O meu contato com o Prof. Raimundo ocorreu quando era estudante de doutorado do CPDA. Fui para o CPDA depois de passar por outras instituições, vinculadas a outras áreas, aliás, não sou graduado em Ciências Sociais. Apesar disso, meu vínculo com o CPDA foi estabelecido a partir dos estudos sobre os movimentos sociais e a questão agrária, quando tive a oportunidade de ter o Prof. Raimundo como meu orientador. Convivi com ele durante os três anos em que morei no Rio de Janeiro (RJ), entre 2017 e 2019, depois deixei a cidade para trabalhar em outro estado. Apesar disso, o Prof. Raimundo fazia questão de que fizéssemos as disciplinas dele. Algumas eu fiz até mais de uma vez, era uma característica fundamental do professor, ele gostava de que estivéssemos sempre por perto dele. Para mim, proveniente da área de administração e de gestão, foi uma experiência muito profícua, pois manter esse relacionamento com o professor facilitava e aumentava meu contato com os textos, as discussões, o método de pesquisa baseado em estudos teóricos de intelectuais. Apesar de o Prof. Raimundo não ter sido muito aberto às questões pessoais, ele sempre propiciou boas oportunidades de conversas no CPDA, e até de almoços com seus orientandos.

Dora Vianna Vasconcellos[4]: Fiz o mestrado, doutorado e pós-doutorado com a orientação do Prof. Raimundo. Ao longo desse tempo, desenvolvemos uma amizade. E, como o Bruno comentou, sempre achei o professor uma pessoa muito dedicada, um orientador aberto. Ele não foi um orientador distante, embora ele evitasse a todo custo falar de questões pessoais. Ele gostava de ser presente na vida das pessoas, encontrava um jeito todo especial de ser próximo. Era uma pessoa que estava sempre ali, caso você precisasse de algo, ligasse para ele, mandasse mensagem. Ele sempre respondia se houvesse qualquer problema em relação à pesquisa, estava sempre disposto a ouvir. Com isso, nossa parceria durou 12-13 anos, durante todo o tempo em que estive no CPDA. Aliás, também fiz o pós-doutorado lá. E, graças ao Prof. Raimundo, desenvolvi o gosto pelo tema do rural. Ele gostava muito de estudar as questões rurais, as questões agrárias, até ficava triste ao perceber que a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro estava reduzindo sua vocação pelos temas agrários. Aliás, a revista que ele coordenava tem essa temática. Ele foi responsável por minha paixão pela questão agrária. O tema do rural foi o verdadeiro ponto em comum que existiu entre a minha pesquisa e a dele.

Leandro Cabral de Almeida[5]: Atualmente, sou doutorando no CPDA-UFRRJ, programa também de meu mestrado, realizado sob orientação do Prof. Raimundo. Antes de conhecer o CPDA, eu não estudava a questão agrária. Foi um curso de História do Brasil, na Universidade Federal Fluminense (UFF), que despertou o meu interesse em estudar a questão agrária, dois anos antes de tentar a seleção para o mestrado no CPDA. Inicialmente, minha ideia era estudar a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com a perspectiva teórica no campo do marxismo. Nesse curso, conheci alguns textos de professores do CPDA, e gradualmente fui tomando conhecimento do programa, das linhas de pesquisa e das publicações dos professores. Até esse período, admito a minha ignorância, não sabia da existência do CPDA nem dessa relação tão forte com os estudos rurais. Em 2012, tentei a seleção para o mestrado no CPDA e, para preparar o projeto, li alguns textos que tinham algum Prof.vínculo com a proposição do meu projeto – textos do Prof. Raimundo e do Prof. Luis Flávio, sobre política e agrarismo no Brasil, considerando o CPDA o programa ideal para os temas que queria pesquisar. Minha convivência com o Prof. Raimundo começou desde o dia da entrevista do processo de seleção do mestrado. Ali, nos corredores do CPDA, quando eu estava à procura da sala onde seria a entrevista, ele foi a pessoa que me orientou, me direcionou para o local onde ela seria realizada, sempre com aquela simpatia, gentileza típica do Prof. Raimundo, e fazendo graça com o momento, me descontraiu. E, para minha surpresa, ele estava na banca da seleção, e foi quem mais me indagou. Lembro que saí dali arrasado, com a ideia de que estava reprovado na seleção justamente por conta das questões que ele tinha me proposto na entrevista… Mas, para minha surpresa, fui aprovado no CPDA e sob a orientação do Prof. Raimundo. Se eu pudesse resumir minha experiência acadêmica com o ele, usaria apenas duas palavras: acolhimento e generosidade. A gente pode dizer que existia um grupo de alunos em torno do Prof. Raimundo. Não era muito grande, mas era um grupo que abrigava pessoas de origens diversas, de universidades, cursos e perfis intelectuais diferentes. Nas disciplinas do Prof. Raimundo, como o Bruno mencionou, era comum que seus orientandos estivessem presentes, e vez ou outra, apareciam alunos de outras instituições. E a minha lembrança é da generosidade dele, pois a partir do momento que você demonstrava algum interesse pelos temas comuns aos que ele pesquisava, prontamente se mostrava disponível para colaborar com textos, livros, sugestões, estímulos a nossas pesquisas e conversas no seu gabinete. Essa experiência foi muito marcante para mim, porque, desde então, todos os temas que eu pesquiso resultam dessas trocas estabelecidas com o Prof. Raimundo, e sou eternamente grato por isso.

Dora: O Prof. Raimundo era uma pessoa que você se lembra exatamente da primeira vez que o encontrou, porque ele era muito simpático, muito aberto. Por isso, a primeira impressão é marcante. Além disso, na academia, geralmente, as pessoas são mais fechadas, e ele não era, sempre estava ali no corredor, conversando, puxando papo. E me lembro de quando entrei no gabinete dele pela primeira vez. Havia alguns quadros, um quadro da Rural[6]  e de uma revista que ele coordenou há anos, a Presença. Sempre que olhava para aquele quadro da Presença, me lembrava dele, porque ele de fato era uma pessoa muito presente. Ele nunca trocou aquele quadro, e todas as vezes que eu olhava para o Prof. Raimundo, ficava admirada, porque realmente me parecia um acadêmico diferente, afável, aberto, era muito legal.

Leandro: Ele gostava de estar entre os alunos, sua juventude surpreendia, acho que essa convivência dele com os alunos trazia para ele força, jovialidade, alegria, um senso de humor muito singular, de fato. Era muito marcante a forma como ele se relacionava com os alunos, não só orientandos. Por exemplo, há o relato de colegas que não foram orientandos do Prof. Raimundo, que não participaram de suas disciplinas, mas que nutriam admiração e um carinho muito especial por ele. Alguns desses estudantes vieram de outros estados, e relembram a forma acolhedora como o Prof. Raimundo os recebia.

Dora: Eu sempre brincava com o Prof. Raimundo, porque ele era piauiense e deu aula na Paraíba. Ficou boa parte da vida dele no interior. Eu dizia: “Raimundo, você é um interiorano na cidade grande.” Falava isso porque ele tinha uma sensibilidade diferente.

Bruno: Para além da boa convivência com ele, ressalto que aquilo, aquele ambiente, era a vida dele. Quero dizer, se o Prof. Raimundo fosse obrigado a ir para casa e não lecionar mais, acho que seria muito ruim para ele, pois já estava em uma fase da carreira em que não precisava mais dar aula, fazia porque gostava, sem contar a Revista ESA, a grande paixão dele, tudo que ele fazia ali, naquele ambiente, era com muito gosto. Também por conta disso o Prof. Raimundo era de fácil convivência.

IDeAS: Como o Prof. Raimundo construiu sua carreira?

Dora: Sei muito pouco sobre como se deu a formação dele. Ele quase não falava sobre isso, mas tenho conhecimento sobre alguns livros que ele dedicou à mãe, que o educou com sacrifício e persistência. Não conheço exatamente os detalhes de como era a família dele, se ele foi o único a estudar, isso tudo eu não sei. Como falei, apenas sabia que ele cursou Direito e, de vez em quando, eu perguntava, ficava curiosa para entender exatamente que papel teve o direito em sua vida. A faculdade de Direito possui muita afinidade com as Ciências Sociais, há muitas pessoas que estudam Direito e também fazem Ciências Sociais. No entanto, ele não gostava de falar sobre esse assunto, acho que ele não se identificou muito com o direito. Eu ficava com a impressão de que o curso não fez muito a cabeça dele. Apesar disso, ele contava que desde o início de sua juventude, aliás, ainda na época da graduação, se envolveu com a militância, não sei exatamente de que maneira. Como militante, foi exilado, e nesse período surgiu, meio que por acaso, as Ciências Sociais em sua vida, pois ele foi convidado a dar aulas de Ciências Sociais no exterior. Na verdade, ele e uma leva de intelectuais brasileiros estiveram no Chile e no México. Lá, teve a oportunidade de dar aula e ao mesmo tempo fazer a pós-graduação. Ele abraçou a experiência e gostou, ainda que não fosse algo novo em sua vida. Porque ele era militante, e a política, digamos assim, já era algo que ele tinha certa intimidade. E assim foi durante todo o exílio. Ele ficou um tempo na América Latina, embora sempre tenha querido voltar. Era uma pessoa que sempre quis retornar ao Brasil. Pelo que sei, ele era casado na época. Mas voltando ao início de sua carreira, não sei exatamente como o Direito surgiu na vida dele.

Bruno: Como a Dora comentou, não conseguíamos extrair muito dele quanto a questões pessoais. Nas poucas vezes em que falava sobre sua prisão pela ditadura militar, era curioso perceber como o semblante dele mudava, era algo muito nítido, praticamente todo mundo acaba sofrendo as marcas desse período. Com relação às Ciências Sociais, a ciência política entrou “por acaso”, porque ele viveu isso na pele, tanto no Brasil como nos períodos no Chile e no México (depois do golpe militar no Chile), e foi tudo acontecendo. Apesar desses fragmentos, não tenho muitas informações sobre essa questão.

Dora: Uma vez ele me contou como voltou para o Brasil. Na verdade, não posso dizer se ele tinha filhos pequenos, enfim, os detalhes nunca soubemos. O Prof. Raimundo não era muito de falar sobre a vida pessoal. Sei que ele queria retornar ao país, e estava com dificuldades para regressar. De vez em quando, ele contava alguns traumas. Uma vez mencionou as apreensões de ser clandestino em um país estrangeiro. Muitas vezes sofreu pressão por isso e por ser exilado. Ele contava que, certa vez, teve de comer papel para não passar informações adiante. E em uma dessas conversas que tivemos, apesar de não saber muitos detalhes, ele me contou que para voltar ao Brasil teve que se declarar apátrida. Veja, até o retorno dele não foi tranquilo. Foi um processo traumático, porque o fato de alguém se declarar apátrida não é algo fácil. Ainda mais para ele, que era um brasileiro, posso dizer, um brasileiro típico. Foi assim que ele regressou.

Leandro: Bem, como já foi mencionado, o Prof. Raimundo era uma pessoa muito focada em seu trabalho, de modo que foram poucos os momentos, de fato, em que conversávamos sobre questões pessoais, embora isso também ocorresse uma vez ou outra, mas não era algo comum. Em relação ao percurso formativo do Prof. Raimundo, é possível seguirmos alguns indícios e tirarmos algumas conclusões disso. Ele estudou Direito na Universidade de Brasília (UnB), no período de 1964 a 1967. Acredito que a sua juventude nesses anos do pré-1964, assim como sua decisão de cursar Direito, possivelmente carregava uma motivação muito comum naquele período – a militância política –, e não deve ter sido diferente para ele. Essa experiência com o Direito, durante os anos de 1964-1967, deve estar ligada diretamente à sua vida política, no sentido macro. E talvez a escolha pela ciência política tenha sido resultado, especificamente, do período de quase 10 anos em que passou no México, entre a Flacso[7] e a Unam[8], depois de um breve período no Chile, entre 1971 e 1972, antes do golpe de Pinochet. Creio que foram experiências importantes para a sua escolha. Esse movimento de sair do Brasil, quando a ditadura endureceu o regime, de modo brutal, passando pelo Chile, também em um período de grave instabilidade, de golpe militar e, por fim, conseguir acolhida no México, ao longo de uma década, trouxe experiências que se somam ao quadro de suas escolhas políticas e opções intelectuais. No México, o Prof. Raimundo encontrou não só acolhida, mas também um ambiente intelectual importantíssimo para sua formação, pois estamos falando de um país com larga tradição de receber exilados políticos, desde a clássica história do asilo do Trotsky, nos anos 1930. O México abrigou um número muito grande de intelectuais e políticos espanhóis na década de 1940, por conta da Guerra Civil, a exemplo do Adolfo Sánchez Vázquez (um intelectual mobilizado pelo Prof. Raimundo em suas disciplinas), que se exilou no México nesse período. Em 1939, Sánchez Vázquez chegou ao México, realizou o doutorado na Unam e se tornou professor dessa instituição. Percurso comum a outros intelectuais exilados. O México recebeu um conjunto de pessoas de diversos países, principalmente entre 1960 e 1970, entre eles, espanhóis, mas também refugiados brasileiros, da Guatemala e de outros países. Suponho que nos anos em que o Prof. Raimundo esteve na Flacso e na Unam, ele tenha convivido com intelectuais importantes como Severo Salles e Pablo González Casanova, assim como Adolfo Sánchez Vàzquez, entre outros, que se dedicavam a pensar a política a partir do marxismo, e o motivaram a seguir tal pensamento. Constatar esse rico e crítico ambiente intelectual é estimulante para pensarmos alguns aspectos do percurso intelectual do nosso querido professor.

Dora: Além disso, acho que na estada do Prof. Raimundo no México, ele teve o primeiro contato com a teoria da dependência, assunto que seria o tema principal de sua vida. Foi por meio desse tema que o Prof. Raimundo pensou a questão da política, sobretudo a questão da revolução burguesa, da revolução brasileira, que são todos conceitos que ele mobilizou em vida. O interesse pela teoria da dependência nasceu no México, momento em ele teve contato direto com os exilados que foram para a América Latina. Se não me engano, o professor que orientou o Prof. Raimundo no México foi muito próximo de pessoas renomadas, a exemplo de José Serra e Fernando Henrique Cardoso, além do Theotônio dos Santos, estudioso que pensou a dependência por uma perspectiva diferente daquela defendida pelo Prof. Raimundo. Não posso afirmar que ele conviveu diretamente com essas pessoas, mas sei que teve acesso aos textos desses pensadores. E essa discussão foi tão cara a ele, que direcionou sua atenção para isso. O interesse pela teoria da dependência nasceu nessa ocasião, já o contato com o marxismo ocorreu antes. Suponho que foi na época da graduação, que o Prof. Raimundo teve contato com revistas e outras publicações marxistas. Ele falava várias vezes que sempre foi revisteiro, e isso foi uma das razões da perseguição política a ele, uma vez que gostava de editar textos políticos. O envolvimento com o marxismo é dessa época. E a questão da temática da revolução burguesa, da revolução brasileira, da dependência nasceu provavelmente no exílio.

IDeAS: A partir dessas influências intelectuais, quais foram as principais correntes teóricas que o Prof. Raimundo teve como base para a sua carreira de pesquisador?

Dora: Ele entrou em contato com essa discussão política no exílio, e se dedicou a ela a vida toda. No entanto, sempre adensou essa discussão com novas temáticas. Por exemplo, quando ingressou no CPDA a convite da instituição – na época, não havia essa questão necessária de concurso público –, o tema do rural entrou em sua vida. Ele se apaixonou pelo assunto. Agregou ao seu marxismo a teoria da dependência e a questão agrária, temáticas que formariam as três diretrizes mais genéricas do seu pensamento. Assim, o interesse dele se voltou para os autores que, de algum modo, tratavam direta ou indiretamente desses temas, sempre no âmbito do marxismo. O Prof. Raimundo tinha a característica de ler muito, sobretudo na época da juventude. Mas a atenção dele, aquela coisa textualística de ficar dissecando o texto e tal, era invariavelmente voltada para autores marxistas, que traziam sempre a questão do conceito de revolução burguesa, seja para legitimá-lo ou refutá-lo. O interessante é que o autor para o qual ele mais se dedicou, a sua grande paixão, seu verdadeiro alter ego, foi Caio Prado Jr., que não mobilizava o conceito de revolução burguesa. Caio Prado Jr. preferia o conceito de revolução brasileira, porque, entre outras coisas, deixava a questão do imperialismo de lado. Ele era anticolonialista, mas não necessariamente anti-imperialista. O Prof. Raimundo gostava dos autores que teorizaram sobre a questão da dependência, mas que não adotavam o ponto de vista do anti-imperialismo. São autores que falam, por exemplo, de uma industrialização, de uma revolução tecnológica que devia ser inclusiva, mas não necessariamente anti-imperialista. Ele se dedicou aos autores que, de algum modo, detiveram-se na questão da inclusão dos desvalidos do campo, uma expressão que ele sempre usava. O Prof. Raimundo analisou a dependência tomando o ponto de vista de Caio Prado Jr., seu quase alter ego, como parâmetro. Todos os autores trabalhados por ele eram citados para referendar essa perspectiva. É a impressão que eu tive ao ler os livros do Prof. Raimundo.

Bruno: Eu penso que esses autores, como a Dora comentou, possuem uma característica de ler o mundo, principalmente o marxismo intermedeia essa questão. Eu percebia que o Prof. Raimundo era muito preocupado em ler o marxismo para além dos grandes centros, por meio de autores que pensavam o marxismo numa perspectiva mais do Sul, mais da periferia e, ao mesmo tempo, o Prof. Raimundo mais maduro, com quem tive a oportunidade de conviver, era um Raimundo avesso às extremidades, avesso ao extremo-esquerdismo, enfim, a leitura que ele tinha desses autores, no meu ponto de vista, era uma leitura sempre crítica, e também crítica à mobilização do marxismo fora de contexto, o marxismo mais radical, essa foi a impressão que tive dele.

Leandro: Concordo com o que foi dito, os estudos que o Prof. Raimundo realizou refletem, de certo modo, o anseio de uma geração de intelectuais, especialmente aqueles ligados à militância, ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que tinham como motivação o desejo de elaborar uma interpretação crítica e criativa do marxismo, como foi destacado pelos colegas. A partir desse ponto, é possível a gente compreender o interesse dele em autores que estabeleceram uma relação crítica com os seus partidos, como Caio Prado Jr., e que investiram na compreensão do marxismo à luz da interpretação das singularidades de cada país, visando um projeto de transformação política revolucionária. Trata-se de uma geração dedicada a contribuir com a renovação do marxismo, distanciando-se daqueles esquematismos típicos das interpretações mais stalinistas do marxismo. A tese de doutorado do Prof. Raimundo, por exemplo, reflete sobre o processo de renovação do PCB após 1958, um marco da renovação do partido, quando há o interesse de se debruçar sobre a elaboração de uma orientação política sustentada pelo conhecimento da realidade nacional e pela valorização das instituições democráticas. Desdobra-se daí o diálogo profícuo que ele estabeleceu, ao longo de sua trajetória, com autores como Gramsci, Caio Prado Jr., Alberto Passos Guimarães, Celso Furtado, José de Souza Martins. Estamos falando de autores que criticaram o transplante mecânico de teses derivadas da revolução na Rússia para países com condições históricas distintas, como Gramsci e Caio Prado. E, embora Celso Furtado e José de Souza Martins não fossem militantes do PCB, ainda assim trouxeram contribuições fundamentais para a elaboração de uma “interpretação de Brasil”, como o Prof. Raimundo gostava de destacar. Martins foi um sério crítico do agrarismo empreendido pelo PCB. Caio Prado Jr. foi um intelectual militante que não economizou críticas ao seu partido, tornando-se até uma pessoa, de certo modo, alijada dos círculos mais fundamentais do partido, vide sua crítica à ideia de um Brasil marcado pelos restos feudais, considerada anacrônica, além da crítica à política sindical do partido. No campo do marxismo, Gramsci é considerado um dos pensadores mais criativos. E o Prof.Raimundo estava constantemente envolvido com os estudos sobre o seu pensamento, que era dedicado, sobretudo, a compreender as especificidades da revolução socialista em seu país. Celso Furtado é um intelectual incontornável para a compreensão da nossa história, ainda que em seu campo intelectual. E contempla a importância da questão agrária para o Brasil e para qualquer perspectiva política voltada para a transformação substancial de nossa sociedade. Há, inclusive, uma interpretação acerca dos trabalhos de Celso Furtado sobre o Nordeste, discutindo possíveis semelhanças com os trabalhos de Gramsci a respeito do Mezzogiorno. Há uma coerência latente entre esses autores, e o Prof. Raimundo se dedicou a explorá-la em suas pesquisas, como em um dos últimos trabalhos dele, Reformismo e camponeses no pensamento de Celso Furtado[9]. Posteriormente, descobri outros autores que fazem essa comparação entre Celso Furtado e Gramsci, corroborando, assim, a perspectiva coerente que o Prof. Raimundo vinha tecendo, a partir desse diálogo, entre intérpretes do Brasil e os teóricos do marxismo, mobilizados em suas pesquisas. Sempre partindo de uma leitura muito detalhada, que ele fazia, especialmente dos textos teóricos. Lembro-me de uma aula dele que, para mim, foi uma das aulas mais apaixonantes que tive na vida, quando ele fez uma longa exposição a partir de um “panfleto” (um pequeno pedaço de papel) no qual lia uma passagem de um texto de Gramsci, sobre revolução passiva. E a partir desse fragmento, ele fez uma abordagem, relacionando teoria marxista e interpretação do Brasil. A questão era: poderíamos aplicar o conceito de revolução passiva no Brasil? E a discussão prosseguia. Então, compondo o quadro dos pensadores brasileiros que ele tinha admiração, Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna também devem ser citados.

Dora: Entre esses autores, o grande teórico para ele era Gramsci, do Risorgimento, como o Leandro comentou. Isso se traduzia para ele, no Brasil, na ideia de que não havia protagonistas políticos fortes. Era a frase que ele sempre falava. A grande questão do Prof. Raimundo era justamente tentar encontrar uma força demiúrgica capaz de fazer um processo revolucionário, nem que fosse pela moda do Risorgimento. Ou seja, baseado não em classes propriamente revolucionárias, tal como Gramsci descrevia, ao fazer um adendo ao próprio Marx ou a Lenin. Para ele, o Brasil era singular, porque era um país sem povo, de burguesia nacional fraca ou quase inexistente, classe média pouco robusta e sem um operariado forte. Essa era uma das grandes questões que mobilizava a atenção dele. O Prof. Raimundo sempre tentou identificar, de acordo com as mudanças do contexto, as forças políticas que dariam origem a essa revolução passiva, que foi outro conceito mobilizado por ele. Isso é interessante porque o Prof. Raimundo se coloca na contramão, por exemplo, dos autores marxistas da teoria da dependência, como Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, que acreditavam na presença de uma questão nacional, que defendiam, por exemplo, uma aliança somente com os setores mais progressistas. O Prof. Raimundo não acreditava nisso, ele achava que a revolução viria como Caio Prado descreveu. Aliás, no livro organizado por ele, uma premiada coletânea sobre os textos de Caio Prado (Caio Prado Jr. Dissertações sobre a revolução brasileira[10]), ele analisa justamente o conceito de revolução brasileira. A partir dos textos de Caio Prado, ele menciona exatamente uma revolução que não poderia ser via Estado, que, pelo contrário, viria de um processo de diminuição do Estado. Em sua visão, a burguesia brasileira se nutria do Estado, era parasitária. Para ele era necessário buscar apoio na burguesia mais internacionalista e, ao mesmo tempo, dar força aos sindicatos para tornar a modernização pelo alto mais inclusiva. É nessa formulação, proveniente de um marxismo menos anti-imperialista e não revolucionário, na qual o Prof. Raimundo se situa a vida toda, a verdadeira marca de seu pensamento. Sobre isso, ele tece diálogos com Armênio Guedes, com toda uma ala do PCB mais reformista e também com Luiz Werneck Vianna, um autor mais atual. Todos esses autores corroboram a ideia dele de que o marxismo brasileiro deveria assumir um posicionamento mais reformista e deixar de lado a ideia de uma revolução disruptiva. O Prof. Raimundo pensava numa revolução passiva que se daria pela via institucional, porém que fosse inclusiva. Ele se colocava sempre no âmbito do reformismo, seu marxismo tinha essa característica.

IDeAS: Seria possível correlacionar algumas transformações sociais brasileiras ao longo da carreira do Prof. Raimundo?

Dora: O Prof. Raimundo foi muito marcado pela questão do exílio. O ponto de vista político dele se relacionava diretamente com esse fato de sua vida pessoal. Ele tinha um profundo medo do rompimento institucional. Por isso, o marxismo dele se situava no âmbito das instituições, do reformismo. Ele tinha receio de uma hecatombe social.  Era uma palavra que, de vez em quando, ele brincava: “Dora, se for assim, será uma hecatombe.” E ele sempre tentou procurar dentro das instituições uma brecha. Era um teórico a favor do reformismo de coalizão, da aliança interclasse. Não gostava da mudança radical. Ele acreditava que o reformismo de coalizão passava justamente pela questão do diálogo com o conservadorismo. Já no final de sua vida, na questão do “fora Temer” (na questão do “fora Bolsonaro” não tive mais a oportunidade de conversar com ele), ele tinha medo de se produzir um vazio institucional. Para ele, não era necessário um “fora Temer”. Era preciso buscar uma saída para o Governo Temer de modo institucional. Com esse tipo de raciocínio, ele sempre se colocou a favor do diálogo com o conservadorismo. Talvez fosse esse um traço de sua graduação em direito. Acho que a trajetória da pessoa é sempre linear, em certo sentido. Foi muito marcante nele essa questão da institucionalidade, de um marxismo reformista, não afeito às radicalizações. José de Souza Martins é outro pensador que aparecia nas obras do Prof. Raimundo, justamente por ser convergente com ele na crítica que direcionava à esquerda por sua teimosia em sempre radicalizar. Para ambos uma ideologia descompassada com a realidade brasileira que somente abria espaço para as acomodações sucessivas e não para rupturas. Além disso, ele, assim como Martins, afirmava que o grande erro do MST é radicalizar. O Prof. Raimundo era avesso à radicalização. A nossa parceria foi muito rica por causa disso. Eu pensava o contrário dele, achava que a esquerda deveria radicalizar. A vitalidade do jogo democrático pressupunha isso, senão, a democracia política viraria uma mera formalidade, com as questões sociais mais significativas sendo alijadas da política. Tínhamos intensas discussões sobre isso. Ele gostava de debater. Na vida pessoal, ele apreciava as polarizações, as desavenças, de ser contrariado, mas na vida política, não. Ele preferia a conciliação. Era muito curioso, quanto mais eu discordava dele, mais gostava da nossa parceria.

Bruno: A orientação para o Prof. Raimundo era sempre instigante, era uma orientação de debate, sempre. Para ele, a orientação era um processo de negociação, sem nunca impor, sempre tentei adaptar-me e debater com ele, no bom sentido, as questões que eu havia estudado, ainda mais os temas relacionados à crítica dele à esquerda, aos mediadores rurais, pessoas que poderiam dar voz aos rurais, à população rural, ele carregava muito isso. Sobre a crítica dele aos mediadores dos movimentos sociais, isso estava presente nesse processo de orientação, tínhamos diálogos bons e intensos, algo muito rico, porque era necessário que eu também soubesse colocar-me, era importante para o processo de argumentação. Especificamente dessa leitura que ele tinha dos autores mais conservadores, ainda mais sobre José de Souza Martins, o Prof. Raimundo dizia: “A esquerda acabou no Brasil. Cadê o MST na rua?”. Essa crítica, de certa forma, era fundamentada, pois, no momento em que a mobilização se concentrava nas redes sociais digitais. Eu me recordo muito bem disso, era um aspecto interessante que ele trazia e elementar para os nossos debates.

Leandro: Nesse campo em que estamos comentando, os estudos que o Prof. Raimundo fez sobre o PCB ressaltaram aquilo que considerava um “caminho politicista” do partido, que valorizava o diálogo, a aliança, os mecanismos institucionais da ação política, privilegiando as eleições e o movimento sindical, com o objetivo de construir um caminho não disruptivo para a revolução. A trajetória do Prof. Raimundo tem essas características, o interesse em compreender a forma como os nossos autores clássicos interagem no âmbito do pensamento social brasileiro, dialogando com o marxismo, sobretudo. Caio Prado Jr. tem esse foco na busca por uma interpretação de Brasil, de modo a delimitar as singularidades de nossa história ante esse projeto político reformista, como o autor formulava, com vistas à incorporação política dos subalternos, pela via dos direitos, próximo daquilo que a ciência política tem chamado de “democratização da democracia”. E o Prof. Raimundo se apropria da preocupação desses autores quanto à necessidade de pensar nossa transformação social, como motivação para interpretar a realidade política brasileira, seus impasses, suas possibilidades históricas. E acredito que ele fez isso buscando fortalecer e sustentar sua análise a partir de pensadores que realizaram essas formulações criativas e críticas do marxismo, situação da qual também emerge seu diálogo com Gramsci, um intelectual que igualmente estabeleceu críticas em relação ao partido, à ortodoxia marxista que circulava à época, mas também assentou essas reflexões teóricas na necessária compreensão da realidade nacional. Além de darmos atenção a esse livro que a Dora citou, Caio Prado Jr. na cultura política brasileira (2001), importantíssimo, também vale lembrar o livro Caio Prado Jr. Dissertações sobre a revolução brasileira[11]. O diálogo do Prof. Raimundo com as elaborações de Caio Prado Jr. é excelente. E nessa obra ele apresenta textos desse autor que ainda não são muito conhecidos na academia (diferente da situação de Evolução política do Brasil e formação do Brasil contemporâneo), com análises de Caio Prado Jr. sobre a importância da incorporação política dos camponeses, no âmbito desse “politicismo”, a fim de ampliar e fortalecer a democracia. A democracia perpassava todas as preocupações intelectuais do Prof. Raimundo. Esse foi um tema fundamental no debate intelectual e político, e continua sendo. Tenho fortes lembranças da importância que o Prof. Raimundo dava ao texto A democracia como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho, considerado fundamental em suas disciplinas para compreender o Brasil e para qualquer perspectiva transformadora da nossa realidade, ainda que em seu horizonte ele se interessasse em compreender esse processo através de um caminho não disruptivo, pela política, em seu sentido mais amplo, como gostava de afirmar.

IDeAS: Como o rural integrava a carreira do Prof. Raimundo?

Dora: Na questão agrária, ele também tinha como referência o pensamento de Caio Prado Jr. Reconheço que, no início de minha trajetória, não conseguia diferenciar reforma agrária de revolução agrária, até que o Prof. Raimundo me trouxe um verbete. Um daqueles papéis avulsos que ele trazia de vez em quando, que iluminavam a nossa vida. Com esse papel avulso o Prof. Raimundo falou mais abertamente do ponto de vista dele sobre a reforma agrária distributivista. Não era esse o conceito que ele gostava de mobilizar, pois na sua percepção essa demanda tinha perdido força com a modernização da agricultura. O gargalo econômico para ele não era mais o campo. Por isso, ele mobilizava o conceito de revolução agrária não distributivista. Pensava numa reforma do rural que não necessariamente se desse através da distribuição massiva de terras. Ele acreditava que uma nova institucionalidade tinha se formado no meio rural – o mundo rural como espaço de vida –, como julgaram Maria de Nazaré Baudel Wanderley e Arilson Favareto. Nesse sentido, ele considerava paradigmático o exemplo das cisternas, de levar água para o semiárido. O Prof. Raimundo sempre se colocava a favor de medidas que não envolvessem uma reforma agrária distributivista. A ideia do rural como espaço de vida era uma tentativa de contornar os problemas rurais favorecendo o crescimento do setor terciário e o aparecimento de uma nova institucionalidade política que permitisse um diálogo político de baixo para cima. Em termos conceituais, o Prof. Raimundo aderiu à questão do território, ao conceito de territorialidade para ampliar o diálogo político e as demandas vindas de baixo. Ao contrário de mim, ele. sempre tentava reformar o mundo rural evitando a ideia de uma reforma agrária distributivista e de uma revolução agrária. Essa ideia dele também veio de Caio Prado Jr, a questão da proletarização e da sindicalização, da formação de um proletariado rural que estivesse respaldado em direitos trabalhistas. A demanda pela terra não era um tema importante para o Prof. Raimundo. Ele se colocava no âmbito dos direitos, a favor de alargar a cidadania, numa perspectiva muito próxima à de Caio Prado. O Prof. Raimundo voltava sua atenção também para outros autores, como Alberto Passos Guimarães, que situavam a revolução no Brasil apenas a longo prazo. Alberto Passos Guimarães era etapista. Acreditava que primeiro era necessária a realização de uma revolução burguesa anti-imperialista e somente depois se consolidaria uma revolução propriamente camponesa. O Prof. Raimundo criticava Alberto Passos Guimarães por ele mobilizar um marxismo sem teoria do Brasil. Para ele, a questão do anti-imperialismo não era nevrálgica, muito menos a revolução camponesa. Ele sempre pensava no âmbito institucional, no alargamento de direitos, de ampliação da democracia, de favorecimento do setor terciário. Ele se dedicava habitualmente a autores que tentavam, de certo modo, respaldar a ideia de que o mundo rural já não era mais aquele lugar do atraso. O mundo rural tinha mudado e o que restava, portanto, era a questão da inclusão; de incluir institucional, legal e mesmo economicamente, mediante salários e empregos, os desvalidos do campo. Assim, o Prof. Raimundo se colocava no âmbito do reformismo. Ele tinha uma verdadeira adoração por Lenin, mas achava que Lenin tinha de ser contextualizado de acordo com a conjuntura brasileira. O Prof. Raimundo não gostava de uma apropriação do marxismo automática. Também citava Maquiavel, no sentido de que um bom político sabe ler as circunstâncias. Ele pensava a política de acordo com as circunstâncias, por isso mobilizava o marxismo de Lenin e também de Marx, mas sempre tentando contextualizar com a nossa realidade. O que ele sempre dizia sobre a questão do rural era isso, que o rural já não era o mesmo dos anos 1960. O rural para ele não era mais essencialmente agrícola, não impunha mais a questão da reforma agrária como se pensou na década de 1960. O Prof. Raimundo se voltava para autores que não respaldavam a reforma agrária distributivista, essa não era a questão para ele.

Leandro: No bojo do que a Dora falou, para compreendermos possíveis contribuições do trabalho do Prof. Raimundo, no contexto em que vivemos, acho que é importante destacar seu envolvimento com uma perspectiva política que busca reformas como caminho de transformação. E, de fato, é algo muito presente na obra dele, e perpassa boa parte dos seus escritos, mesmo que indiretamente. Mas eu ainda chamaria a atenção, mais uma vez, nesse debate sobre o reformismo, para a questão da valorização da política, do “politicismo” que ele buscava enfatizar na tradição do PCB. Destaco especialmente a forma como o Prof. Raimundo valorizava essa tradição politicista que é forjada no PCB, especialmente, após 1958. Considero fundamental a questão da incorporação política das massas, a incorporação dos subalternos, como forma de fortalecer a democracia, de fortalecer as instituições, via sindicatos, associações, comitês de bairros, jornais, num trabalho que visava à “popularização” da política, ou à democratização da política. E outro aspecto, que me vem à memória, é o tema das alianças políticas, das Frentes Amplas, que é uma discussão presente também no marxismo. Há textos do Prof. Raimundo em que analisou a oposição à ditadura realizada pelo MDB[12]. E acredito que ele tratava até com generosidade esse movimento. Mas, acho que, no contexto em que vivemos, esses elementos se destacam, sobretudo diante dos entraves à mudança social, como o processo de desagregação social, de corrosão das instituições, de ataque à educação, de precarização do ensino público e do mundo do trabalho. E reverter esse processo é fundamental para que seja possível contornar alguns danos produzidos pelo rumo que nosso país engendrou em suas recentes políticas. Nesse quadro, se destaca a necessidade do diálogo político com forças políticas diversas, valorizando-se o elemento comum, que é a democracia. Não sei se o Prof. Raimundo seria otimista diante do atual cenário político do Brasil. Mas tendo a pensar que o fortalecimento e a ampliação das forças democráticas de nosso país é a única alternativa que pode nos ajudar a enfrentar os desafios que temos diante de um governo conservador, autoritário, de traços neofacistas. E isso passa pelo rebaixamento de algumas particularidades político-partidárias para um segundo plano, em prol do que é essencial, estratégico, que é a defesa, preservação e ampliação da democracia. E na perspectiva do Prof. Raimundo e dos autores que ele valorizava em seus trabalhos, esse aspecto é fundamental, a incorporação dos desvalidos. Como Gramsci analisou a questão meridional, ao retratar os camponeses como uma massa amorfa e desagregada, característica dos subalternos, fica em destaque que uma forma de romper com esse quadro é a educação, a educação política, a incorporação desse contingente na política, também por meio da luta por direitos. É algo que está presente em diversos momentos do seu trabalho, são contribuições úteis para compreendermos e orientarmos nossa política nos dias de hoje. Apesar de discordar do Prof. Raimundo, como a Dora mencionou, acerca dos limites de um caminho reformista, debate que ele não hesitava em participar e ser contrariado (era algo, aliás, que ele valorizava muito). Mas, além disso, penso que existem elementos importantes em seu trabalho que nos ajudam a compreender o mundo da política de hoje, e os desafios que se apresentam, que são urgentes.

Bruno: A preocupação do Prof. Raimundo também se baseava em refletir sobre quem são os desvalidos, ele tinha a ideia de qual era a participação política dos rurais no mundo hoje, embora não houvesse uma matriz teórica por trás da aliança camponesa-operária. Ele estava mais preocupado com a participação da política de uma forma mais geral, não uma revolução, uma reforma agrária distributivista, uma participação no quesito de leis, uma participação mais ativa para além do quesito de distribuição de terras.

IDeAS: Desejam compartilhar mais algum relato pessoal a respeito do Prof. Raimundo?

Bruno: Eu acho que o tipo de pesquisa que o Prof. Raimundo fazia, também realizada por parte de seus orientandos, é uma pesquisa que, infelizmente, caminha à extinção, uma preocupação que ele sempre teve, uma pesquisa feita a partir dos intelectuais, do pensamento, o método como se dá, poucas pessoas têm feito esse tipo de pesquisa, e cada vez menos. Muitas das vezes, temos na academia essa preocupação positivista com a questão do afastamento do objeto, e o Prof. Raimundo deixou um legado, a forma de fazer a pesquisa, de encarar o objeto. Quando as pessoas questionavam: “Mas não vai a campo”? Ele retrucava: “O campo é o autor, os livros”. E sempre reforçava a questão do método. Essa é uma preocupação para que haja mais pessoas interessadas em dar continuidade a esse tipo de fazer pesquisa.

Dora: Quero ressaltar o lado generoso do Prof. Raimundo. Apesar de ele se colocar num campo de crítico das esquerdas, ele me aceitou, embora eu tivesse um posicionamento tão distante do dele. A nossa parceria durou tanto tempo, e isso diz muito a respeito dele. O Prof. Raimundo era uma pessoa que superava as desavenças políticas, nunca as levava para o lado pessoal. Sempre se colocava do ponto de vista da generosidade, do acolhimento, prova disso foi ter surgido uma parceria, uma amizade muito legal, ainda que estivéssemos posicionamentos muito diferentes. Aliás, ele gostava disso. Um acadêmico raro que gostava de ser confrontado diretamente. Ele falava do posicionamento dele, e se o orientando ficasse muito quieto, ele não gostava. Apreciava quando a pessoa falava, dizia o que pensava. Isso é muito enriquecedor. Sempre aberto, sempre querendo que você crescesse, desenvolvesse seu ponto de vista, virasse autor. Apesar de toda a resistência que impunha, ele era bem enfático quando dizia que a gente deveria aprender a pensar. Era quase uma resistência imposta por um psicanalista, de modo que a resistência servisse para você aprender a se afirmar. Com a experiência que tive com o Prof. Raimundo, aprendi a expor e escrever meu ponto de vista. Ele era muito generoso, muito legal com isso. Posso dizer, com experiência acadêmica que tenho, que ele foi um homem raro que gostava de confrontar, mas que também era, sobretudo, de acolher. Esse lado do Prof. Raimundo é algo que devemos lembrar e levar em nossa experiência na academia e na vida.

Leandro: Tive andanças fora da Rural, minha trajetória acadêmica se divide entre a UFF e a Rural, e o Prof. Raimundo ficará na minha memória, de fato, pela generosidade, pelo acolhimento, como mencionei no começo da entrevista, ainda mais por seu raro perfil no ambiente acadêmico. Embora a entrevista seja voltada para o trabalho acadêmico do Prof. Raimundo, isso é indissociável do ser humano que ele era. Nesse aspecto, sou muito grato pela forma como recebeu meus projetos de pesquisa, tanto no mestrado como no doutorado. Minhas pesquisas são resultados de diálogos que tivemos e, concordando ou não com ele, muito do meu processo formativo esteve vinculado ao Prof. Raimundo. Ele foi muito importante para mim, por tornar o ambiente acadêmico menos hostil também, digo isso especificamente porque saí de uma cidade pequena, do interior do Rio de Janeiro. Minha graduação foi cursada numa universidade privada, com pouco estímulo à pesquisa, e eu não tinha qualquer experiência com a pesquisa quando cheguei no CPDA, porém o Prof. Raimundo sempre demonstrou confiança em seus orientandos, na capacidade que eles tinham, e isso era um incentivo muito grande. E acerca do acolhimento, era interessante a forma como ele fazia questão de saber como desenvolvemos nossas atividades, ampliando esse interesse também para nossa participação em outras disciplinas, para saber como poderiam contribuir para nossas pesquisas. O acolhimento também se estendia para o âmbito pessoal. E, nesse caso, me refiro às dificuldades concretas que vivi no meu trânsito pendular entre Araruama e o Rio de Janeiro, das dificuldades de dividir  o meu tempo entre a pós-graduação, meu trabalho docente e minha família. Tenho muita gratidão, porque a minha origem é bastante humilde, minha família é composta por trabalhadores que sempre lutaram muito para conquistar as coisas, e foi minha presença no mestrado e no doutorado que possibilitou mudanças substanciais na minha vida, na minha trajetória pessoal e profissional. Foi bem difícil, muito desgastante, manter-me no Rio de Janeiro, dar aula, administrar o tempo com a família, e isso me gerou, depois de muita luta, um processo de adoecimento que me levou à um quadro de crise de ansiedade e síndrome do pânico durante a seleção do doutorado, quando o Prof. Raimundo me acolheu de modo benevolente. Por tudo isso, tenho uma gratidão imensa pela vivência que tive com ele, por sua generosidade,  acadêmica e também pessoal. Esse professor, nordestino, de humor singular e conversa tão boa. Sou muito feliz por ter sido aluno do Prof. Raimundo.

Renner (entrevistador): Na vivência com o Prof. Raimundo, ele sempre foi extremamente sereno, uma pessoa muito sensível, a todo momento esteve aberto a nos ouvir, realmente atento a saber como estávamos. Podemos dizer que ele realizava seu trabalho como professor perfeitamente, seja no sentido científico, de conhecimento, na parte de ensino, seja no sentido de incentivo, com estímulos ao propor aprendizagem, uma mudança, a partir de como de fato a pessoa se encontra e a realidade dela para que aquilo possa ter significado. O Prof. Raimundo foi para mim extremamente marcante, sobretudo no meu ingresso como docente da Universidade Federal de Roraima (UFRR), ele foi uma das pessoas que curiosamente percebeu e me disse: “Você está a caminho da Amazônia” – sem que eu dissesse sequer uma palavra sobre isso. E eu demonstrei muita surpresa nessa ocasião, fiquei intrigado para saber como ele descobriu isso, e ele, sempre muito reservado, sorriu serenamente. Eu me lembro disso como se fosse hoje. O Prof. Raimundo foi muito marcante na vida de todos aqueles que tiveram a oportunidade de conviver com ele, como professor como pessoa. E, mais uma vez, agradeço a todos a oportunidade de compartilhar as experiências e as vivências com o raro revisteiro Prof. Raimundo Santos, uma pessoa extremamente acolhedora, que sempre apreciou estar presente e acompanhar os estudantes, seja no café, seja no almoço, pois fazia questão de aproveitar esses momentos com todos. Uma pessoa muito simples, extremamente simples, de uma humanidade indizível. Muito obrigado pela dedicação do tempo dos senhores para com essa entrevista.

Raimundo Santos

Raimundo foi professor da Universidade Federal da Paraíba, no então campus de Campina Grande, e veio para o CPDA ainda nos anos 1980, onde se dedicou ao ensino, à pesquisa e à edição da Revista Estudos Sociedade e Agricultura, da qual foi o criador e principal impulsionador. Dedicou-se à revista de corpo e alma, transformando-a numa das mais importantes publicações da área de Ciências Sociais voltadas para a análise do meio rural em suas múltiplas dimensões.

Graduado em Direito pela Universidade de Brasília, fez Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e Regional pelo Curso de Desarrollo Urbano y Regional (CIDU) da Universidad Católica de Chile (1971), concluiu Mestrado em Ciência Política pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (1978); e Doutorado em Ciência Política pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM – 1984).

Desde sua vinda para o CPDA dedicou-se aos estudos na área de Ciência Política e História Intelectual, voltando-se para pesquisas sobre Pensamento Social Brasileiro, Cultura Política e Movimentos Sociais. Orientou vinte dissertações de mestrado e tese de doutorado, todas com temas relacionados a esses campos temáticos. Publicou diversos artigos, livros e capítulos de livros sobre o agrarismo brasileiro, em especial sobre Caio Prado Júnior e José de Souza Martins, bem como sobre as concepções do Partido Comunista Brasileiro, sempre inspirado pelo pensamento de Antonio Gramsci.

Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 15, 1-18, e021014, jan./dez. 2021 • ISSN 1984-9834


[1] A entrevista está disponível em: https://revistaideas.ufrrj.br/ojs/index.php/ideas/article/view/236/254.

[2] Entrevista realizada em 14 de agosto de 2021, por meio de videochamada.

[3] Analista de Cooperativismo do Sescoop/GO. Doutor pelo CPDA/UFRRJ.

[4] Professora substituta da UFRJ. Mestra, Doutora e Pós-doutora pelo CPDA/UFRRJ.

[5] Mestre e Doutorando pelo CPDA/UFRRJ.

[6] Rural – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

 

[7] Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso).

[8] Universidad Nacional Autónoma de México (Unam).

[9] Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/699.

[10] SANTOS, Raimundo (Org.). Caio Prado Jr. Dissertações sobre a revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2007.

[11] SANTOS, Raimundo (Org.). Caio Prado Jr. Dissertações sobre a revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2007.

[12] Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).