Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 15, 1-25, e021002, jan./dez. 2021 • ISSN 1984-9834
Entrevista • Série Especial • Acesso aberto
Entrevista com Nelson Giordano Delgado
Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes
Interview with Nelson Giordano Delgado
Rural studies in perspective: people, knowledge, institutions and networks
A Revista IDeAS tem a satisfação de publicar mais uma entrevista da nossa série especial que tem como objetivo promover o diálogo com pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam aos estudos sobre o mundo rural em suas múltiplas interfaces. Nosso entrevistado é o Dr. Nelson Giordano Delgado, que é professor titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Delgado abordou temas históricos e contemporâneos centrais aos estudos rurais, recuperando sua trajetória acadêmica, a história do CPDA, o cenário das políticas agrícola e agrária, discutindo ainda a proposta de renda mínima. Nosso entrevistado também compartilha suas percepções sobre a política macroeconômica, o cenário internacional, além das novas questões postas ao meio rural. ••• Revista IDeAS is pleased to publish another interview of our special series that aims to promote dialogue with researchers who are dedicated to studies on the rural world in its multiple interfaces. Our interviewee is Dr. Nelson Giordano Delgado, who is a professor at the Graduate Program in Social Sciences in Development, Agriculture and Society, at the Federal Rural University of Rio de Janeiro. Delgado addressed historical and contemporary themes that are central to rural studies, recovering his academic trajectory, the history of CPDA, the scenario of agricultural and agrarian policies, and also discussing the proposal for a minimum income. Our interviewee also shares his perceptions about macroeconomic policy, the international scenario, in addition to the new questions posed to rural areas. |
Citação sugerida DELGADO, Nelson Giordano. Entrevista concedida à Revista IDeAS. Série Especial – Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 15, p. 1-25, e021002, jan./dez. 2021. Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0). Data da entrevista: 10 nov. 2020 Publicação: 15 jan. 2021 |
Série Especial
Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes
A Revista IDeAS tem a satisfação de publicar mais uma entrevista da nossa série especial “Estudos rurais em perspectiva: pessoas, conhecimentos, instituições e redes”. Inaugurada com uma entrevista com a Profa. Dra. Eli de Fátima Napoleão de Lima[1], a série tem o objetivo promover o diálogo com pesquisadoras e pesquisadores que vêm se dedicando aos estudos sobre o mundo rural em suas múltiplas interfaces.
Consideramos importante conhecer um pouco da trajetória pessoal e profissional dessas pessoas que se dedicam a refletir sobre as interpretações, implicações, desafios e perspectivas que este vasto campo de estudos nos apresenta, assim como o contexto intelectual e institucional de sua produção científica. Deste modo, procuramos nos debruçar sobre os itinerários do dinâmico campo de estudos rurais, atentando para as institucionalidades e redes que o constituem.
Nosso entrevistado é o Prof. Dr. Nelson Giordano Delgado, que é professor titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Economia e Ciências Sociais, principalmente nos temas sobre agricultura e economia brasileira, economia política do sistema mundial, regime comercial internacional, políticas públicas, agricultura familiar, desenvolvimento territorial e desenvolvimento rural.
Delgado recupera sua trajetória acadêmica, a história do CPDA (que tem relação direta com seu percurso profissional), o contexto da ditadura militar do Brasil, além do cenário das políticas agrícola e agrária. Nosso entrevistado também discute os impactos da pandemia de Covid-19, a política macroeconômica e a proposta de renda mínima, que considera um novo tema central. Por fim, o professor compartilha suas percepções a respeito do cenário internacional, das relações multilaterais do país e o significado da vitória de Joe Biden nas eleições dos Estados Unidos.
Boa leitura!
Entrevista com Prof. Dr. Nelson Giordano Delgado
Entrevista concedida a Yamira Rodrigues de Souza Barbosa e Mônica Ramos Domingues Carneiro[2].
IDeAS: Professor Nelson, agradecemos a sua disponibilidade em nos conceder esta entrevista! Poderia nos relatar o que levou um jovem da “República Rio Grandense” a se interessar por economia? Como foi estudar economia no período da ditadura civil militar?
Nelson: Primeiro, quero agradecer muitíssimo a vocês o convite, que honestamente me honra. Vocês terem me convidado é algo que me faz muito bem, emociona, então queria agradecer por esse convite. Eu acho que é uma revista também muito boa, vocês estão trabalhando muito nela e me sinto muito feliz e honrado em estar aqui com vocês.
Bom, temos que voltar anos e anos. Veja bem, eu sou de uma família de classe média do Rio Grande do Sul. Meu pai foi deputado, ele era do PSD[3] e acabou sendo cassado depois, em 1969, no AI-5[4], embora tenha apoiado o golpe numa ala do PSD. O governador do Rio Grande do Sul era o Ildo Meneghetti. Mas ele sempre foi, para ser honesto com ele, uma pessoa tolerante. Por exemplo, desapareceu com denúncias que existiam contra mim no Dops[5], tirou pessoas da cadeia, uma delas ficou lá em casa, coisas desse tipo.
Eu estudei no colégio Anchieta de Porto Alegre e tinha sido destinado a ser médico. Claro, sou eu e minha irmã, que é quatro anos mais nova do que eu; sou o único filho homem e tinha que ser médico. Nessa época era Científico e Clássico. O Científico era para quem ia fazer engenharia, medicina, que eram as profissões mais prestigiosas na época; e o Clássico era para quem ia fazer filosofia ou direito, coisas assim, seria mais para ciências humanas, como a gente diz hoje. Eu fui para o Científico porque ia fazer medicina. Nunca gostei disso, física, química, acho que nunca aprendi, não tinha interesse. Aí o que aconteceu foi o seguinte. Nós tínhamos um grupo no colégio, uma “turma” como a gente chamava na época, que começou a se politizar um pouco e, também, a criticar a orientação do colégio. Quando saímos do colégio, quando nos formamos, escrevemos um documento coletivo (assinado por todos os autores) criticando a orientação do colégio, entregamos para todos os padres, que eram uns padres jesuítas e o prêmio foi que nos denunciaram ao Dops. Então, já tinha uma certa politização, eu não era militante, mas tinha uma politização, e interesse por esses temas que hoje chamamos de ciências humanas e sociais.
E vejam bem, quando eu estava no terceiro ano Científico, ou seja, para fazer o vestibular, comecei a ler um livro do Celso Furtado, tenho até hoje essa edição, chamado a “Pré-revolução brasileira”, que é um livrinho fininho dele, um livro que é basicamente sobre o Nordeste. Mas aquele livro me marcou profundamente. Eu fiquei encantado com aquilo. Nunca me esqueço, eu estava no quarto dos meus pais lendo esse livro, meu avô estava em Porto Alegre e ficava hospedado no meu quarto, era de Alegrete. Aí minha mãe entrou no quarto e eu disse para ela: “não vou mais fazer medicina, vou fazer economia”. E aí foi um escândalo inicial, especialmente do meu pai. Mas acabou não sendo tão escandaloso, logo foi absorvido e aí entrei na economia.
Dois grandes amigos meus também fizeram economia. Entramos na faculdade, na UFRGS[6], em Porto Alegre. Os melhores professores tinham sido excluídos, tinham sido expurgados. Nós chegamos a tirar professores durante o curso, porque eram muito fracos, e tínhamos uma postura razoavelmente atuante. Vocês imaginam, eu entrei na faculdade em 64, não era o período ainda da luta armada, mas era um período de confronto. Numa primeira fase, a ditadura não era branda, mas não era tão brutal, pelo menos para certos grupos, como se tornou depois com o AI-5. Eu me lembro que participei do centro acadêmico, essa coisa toda, e de grupos que estudavam por fora da universidade. Eu me lembro que comecei a ler Keynes nesse contexto. Mas foi uma péssima faculdade, muito fraca. E nós nos formamos. Para vocês terem uma ideia, foi escolhido para paraninfo da turma um professor que tinha sido chefe da comissão de expurgo da faculdade de economia. Aí, obviamente, nós não nos formamos, o nosso nome não apareceu no convite, nós não deixamos, essas coisas que se fazia. Houve uma formatura à parte comigo e com outros colegas que tinham se recusado a participar da formatura oficial.
E foi isso, entendeu, essa foi a forma como eu entrei na economia. É interessante pensar sobre isso, porque aí vocês veem como a nossa vida é meio moldada por certos acidentes e como de repente a gente é jogado em determinadas direções. Como que eu fui para economia e não fui para sociologia, sabe, para outras carreiras, digamos assim? Foi interessante. A escolha da economia, eu acho que tinha a ver muito com o Celso Furtado, mas, também, o Florestan Fernandes era uma paixão que eu tinha. Quer dizer, quando entrei na economia, tinha um enorme interesse pela sociologia. Então, foi assim.
IDeAS: Como foi o início da sua trajetória profissional? O que te levou a cursar o mestrado em Economia na Universidade de Nova York e como foi esta experiência?
Nelson: Eu nunca fui um economista no sentido tradicional, sempre me interessei por outras coisas além da economia estrita, da teoria econômica. Aí, me formei e trabalhei um ano em Porto Alegre, numa pesquisa que foi muito interessante, sobre a bovinocultura gaúcha, com um grupo muito interessante. Inclusive um dos professores tinha sido cassado na faculdade, o Claudio Accurso, que foi uma figura importante no Rio Grande do Sul, num determinado período. Ele era muito instigante e bastante formador de pessoas. Então participei nesta pesquisa, e passei um ano nisso. Isso foi em 68. Aí, veja bem, no final de 68 eu me casei, tinha 22 anos, e depois resolvi que queria sair de Porto Alegre. Eu nunca gostei muito de Porto Alegre, não me pergunte por quê. De alguma maneira, eu queria sair, eu achava Porto Alegre muito provinciana, não gostava, como até hoje não gosto muito de Porto Alegre, tenho estranhamentos com a cidade.
Aí, vim trabalhar no Ipea[7], já na ditadura, era o Delfim que era o ministro da fazenda. No Ipea nessa época estava o Arthur Candal, que foi muito brilhante e não é muito conhecido (ele foi uma figura importante na construção da petroquímica no Brasil nos anos 70, se não estou enganado) e que tinha sido meu professor. O Candal era uma figura importante no Ipea porque tinha conduzido a elaboração do diagnóstico da economia brasileira para a gestão do Delfim, no governo Médici, que provocou uma mudança nos rumos da política econômica, iniciando o período que se chama de milagre brasileiro. Bom, aí estava Candal e com um pouco de empurrão do meu pai, que me ajudou nesse processo, eu vim para o Rio de Janeiro, para o Ipea, onde fiquei um ano.
Na época, o que se tinha de pós-graduação em economia, só tinha mestrado, era a EPGE[8], no Rio de Janeiro, o IPE, que depois virou Fipe[9], na USP, em São Paulo, e o Iepe[10], no Rio Grande do Sul, que era muito fraco, muito conservador, depois melhorou, claro, mas nessa época era muito conservador porque muita gente tinha sido expurgada da universidade. No Rio, fazia parte de um grupo, um grupo de três ou quatro amigos, e resolvemos todos fazer o mestrado na USP. E fomos pra USP porque tinha uma disciplina que se chamava Sociologia do Desenvolvimento. Então fomos para lá. E aí, eu estava muito obcecado, porque tinha muita clareza que não sabia nada, entende, e que precisava aprender, então estudei feito um louco. Fiz esse curso lá e me saí muitíssimo bem, sabe, desses acidentes, não é nada demais, um ano você se sai mal, outro ano você se sai bem. Eu estou convencido de que o lugar onde você está e o que você faz podem estimular as suas potencialidades ou bloqueá-las, de modo que você se dá bem ou se dá mal, dependendo dessas circunstâncias, além de um pouco de sorte, essas coisas todas. Então, eu me saí muitíssimo bem e ganhei uma bolsa para os Estados Unidos, porque era a época do MEC/USAID[11], então todo mundo tinha bolsa para os EUA. Era a época dos brasilianistas, em várias universidades importantes havia professores que estudavam o Brasil, e esses professores tinham interesse em ter alunos brasileiros. E veja, eu tinha começado a fazer uma dissertação que eu não defendi porque a titulação não era o que me interessava nessa época, o que queria era estudar. Então, quando surgiu a possibilidade dos EUA, eu nem terminei essa dissertação na Fipe, fui logo para os EUA.
Fui para Berkeley, Califórnia. Fui aceito, apesar de que meu teste de inglês foi o pior do departamento, eu era péssimo em inglês (nessa época a gente estudava francês, inglês era coisa dos americanos). Fui para lá e foi um desastre, porque o curso era absolutamente matematizado, o forte sendo a abordagem do equilíbrio geral em economia. Confesso que fiz algumas disciplinas das quais aproveitei muito pouco. Tinha poucos professores que me interessavam. E naquele esquema americano que era um esquema para você, de fato, sair pensando como eles querem que você pense. Então se passava a maior parte do tempo fazendo exercícios e não lendo os autores, e eu queria ler, ler Keynes, Joan Robinson, Marx, os autores que me fascinavam na época.
Tinha um grande amigo que tinha feito o mestrado comigo em São Paulo e que estava em Nova York. E aí com a influência de um professor americano, Douglas Grahan, que deu aula na USP, na época do mestrado na FIPE, que tinha ficado meu amigo e que gostava de mim, porque eu tinha me saído muito bem, ele conseguiu minha transferência da Califórnia para Nova York, para a New York University, onde fiquei dois anos absolutamente maravilhosos. Foram maravilhosos. Eu passei 73 e 74 em Nova York. Em novembro, nasceu minha filha mais velha, aí eu disse, vamos embora, voltar para o Brasil, chega desse negócio. Eu já tinha feito todos os exames, tinha feito todos os créditos, eu tinha tudo, menos a tese. Aí, eu disse para o meu orientador “olha, eu vou me embora” e vim embora.
Eu fui para a Unicamp[12], onde fiquei dois anos, um ano morando em Campinas o outro em São Paulo. Não foram anos bons. Veja, Campinas não era uma coisa tão grande como hoje. E se considerava o último reduto da esquerda em economia na universidade, ou seja, era estranho e arrogante, eu nunca gostei dessas coisas. Mas lá conheci muita gente, por exemplo o professor Renato Maluf, que estava lá fazendo o mestrado, cheguei a dar uma aula para ele. E fui para a Unicamp para trabalhar numa pesquisa. Claro, eu estava me esquecendo, foram as minhas primeiras pesquisas em agricultura, foi aí que comecei a mexer com agricultura. Nós fizemos duas pesquisas na época, para o Incra[13], e fizemos um mapeamento da produção agrícola no Brasil, a partir do Censo de 1970, visitando, inclusive, estados, lugares, casos concretos. Isto foi em 75/76, era o período em que a soja estava se expandido brutalmente, inclusive começando a ir para o Centro Oeste, ela vai mais para os 80, mas estava começando a ir. Então, nós fizemos esse mapeamento e fomos a vários lugares. Fui ao Maranhão, ao Ceará. Foi uma descoberta para mim do Brasil, porque as pessoas que eram do Rio Grande do Sul, pelo menos da minha geração, não conheciam nada do Brasil, por ser um lugar na extremidade sul do país, fechado, culturalmente fechado, meio que se achavam os melhores, entende, então foi fundamental essa experiência. Eu fiquei dois anos na Unicamp e decidi ir embora. Pela primeira vez e única eu pensei em voltar para Porto Alegre, porque tinha um amigo sociólogo que estava na UFRGS e me convidou para trabalhar numa pesquisa lá, infelizmente ele morreu logo depois, subitamente. E aí, um outro amigo que eu tinha conhecido em Nova York me convidou para vir trabalhar no Horto, na FGV, no que seria o CPDA[14]. Porque em Nova York conheci um casal de brasileiros muito generoso e que convidava outros brasileiros que estavam lá para o Natal, festas, reuniões na casa deles, e nesse processo eu conheci gente como Millôr Fernandes, Paulo Francis, Henfil, Luís Jatobá que estavam lá nesse período. Foi uma experiência de vida fundamental, foi muito mais uma experiência de vida do que simplesmente estar estudando economia, apesar de que eu estudei muita economia, não tenha dúvida disso.
IDeAS: Como foi a sua chegada ao CPDA e o início do trabalho como docente e pesquisador em nossa instituição?
Nelson: Veja bem, falando francamente, esse período da Unicamp foi um período difícil para mim, de adaptação a um novo ambiente de trabalho. Havia muitos holofotes em cima da economia e nunca consegui me adaptar muito a isso, problema meu. E o ambiente era relativamente fechado, depois o departamento de economia se transformou em instituto, se diversificou, mas antes era uma coisa muito fechada, que girava em torno do João Manuel Cardoso de Melo, que era a liderança principal do departamento. Eu estava chegando dos EUA, havia também uma certa desconfiança com isso. Mas as pesquisas foram muito boas, nós tínhamos uma turma muito boa. Por exemplo, o Renato participou dos dois anos da pesquisa. A dissertação de mestrado do Renato veio da pesquisa sobre o arroz no Maranhão. E várias pessoas, algumas surpreendentes, por exemplo, Yoshiaki Nakano, que hoje é um grande economista, figurão de São Paulo, trabalhava conosco nessa época. E muita gente passou por lá. Mas eu não tinha certeza se eu era do ramo, não tinha completa certeza. Será que eu sou desse ramo, será que eu sou um blefe nesse trabalho em economia? Eu não tinha muita certeza a respeito.
E aí surgiu a oportunidade de vir para o Rio. Eu vim para dizer que não ia ficar aqui, porque minha ex-mulher tinha entrado na História da USP, que era com o Fernando Novais, uma grande figura na época. Mas aí conheci o local, não sei se vocês conheceram o prédio onde era o Horto, no Solar da Imperatriz, no final da Pacheco Leão. Aquilo lá era uma coisa deslumbrante na época e tinha um programa de História da Agricultura. E eu adorava o Rio de Janeiro. Então, aí veio a tentação de voltar para o Rio, que nos deslumbrava. Nós nos consultamos e ela disse “bom, se conseguir a transferência do curso para o Rio de Janeiro, tudo bem, vamos para o Rio”. E aí, finalmente, nós conseguimos uma transferência do curso dela para a PUC[15], aqui no Rio, onde ela fez História.
O programa de História da Agricultura era dirigido pela Maria Yedda Linhares. Era um programa que envolveu muita gente. Tinha uma antropóloga brilhante, a Margarida Maria Moura, que foi uma influência muito grande sobre mim. E depois vieram Ana Célia Castro, de Campinas, um grande amigo que foi muito importante nesse período e foi um dos fundadores do CPDA, o Paulo Beskow. O Paulo, por exemplo, tinha trabalhado comigo lá nessa pesquisa na Unicamp, mas veio para cá sem que a gente tivesse combinado. O CPDA foi criado pra ser a cabeça pensante do Sistema Nacional de Planejamento Agrícola, criado no período do Alysson Paulinelli à frente do Ministério da Agricultura (ele depois vai ser uma dessas figuras destacadas do agronegócio). O sistema era formado pela Secretaria Nacional de Planejamento Agrícola (Suplan), que ficava no Ministério da Agricultura, e pelas Comissões Estaduais de Planejamento Agrícola (Cepa). E o CPDA era para onde a meninada do sistema viria para se formar. Como foram de fato as primeiras turmas. A primeira turma era só de pessoas das Cepa ou da Suplan, ou coisa desse tipo. Agora, o pessoal que trabalhava no contexto das Cepas era um pessoal, de modo geral, progressista. Carlos Miranda, que até hoje, até faz pouco, foi uma pessoa fundamental no relacionamento com o CPDA, está na origem do mesmo porque era o chefe das Cepas. Então, por alguma razão, o mestrado e o programa de História foram para a Fundação, certamente em algum arranjo político-institucional mais conservador e, coincidentemente, entrou um grupo que era, vamos dizer assim, mais à esquerda, com exceção, provavelmente, do chefe, que era uma pessoa mais oportunista e que, depois do primeiro ano, nós tiramos e eu fui escolhido para ser o chefe do Centro. E aí, efetivamente, o CPDA, vamos dizer assim, começou. O CPDA como vocês conhecem hoje.
Nós começamos a contratar, nós tínhamos dinheiro, com o convênio com o ministério. Foi uma coisa inacreditável, e isso se deve também ao fato de que a Fundação Getúlio Vargas, num certo sentido, foi uma âncora para isso. Nós chegamos a ser um dos lugares onde começou o debate público no Rio de Janeiro neste período. Nós tínhamos encontros todas as sextas-feiras, onde trazíamos intelectuais como Jacob Gorender, Chico de Oliveira etc. e juntava gente lá no Horto nas sextas-feiras. Era um grande debate, estava começando a surgir logo em seguida o PT[16], então depois vieram muitos alunos nesta perspectiva e entrou um grupo de pessoas de esquerda. E isso num certo sentido foi possível porque era na Fundação Getúlio Vargas, foi possível até um certo ponto e porque se negociava. Tínhamos uma capacidade de negociação razoável.
Eu quero chamar a atenção de vocês para duas coisas. Primeiro, o CPDA já nasceu múltiplo, no sentido de diferentes profissões, origens, digamos, acadêmicas e muitas posições políticas, diversas. Gente do PCdoB[17], do PCB[18], gente que não tinha filiação desse tipo, tinha até uma menina que era do MR8[19], vocês imaginam, era assim. Mas uma coisa que foi uma marca absolutamente maravilhosa nossa é que o coletivo nunca permitiu que o curso fosse tomado por qualquer dessas correntes. Houve tentativas. Uma delas foi de uma pessoa que talvez vocês conheçam, o Horácio Martins de Carvalho, que quis transformar o CPDA num aparelho. E após um grande debate em que participaram alunos e tal, o Horácio saiu do CPDA. Mas isso foi uma discussão pública, não foi arranjo de gabinete. A segunda coisa central foi a prática de que o coletivo é quem manda, que vem desde a origem e que também foi uma forma de gerir o CPDA numa situação de pressão por todos os lados – Fundação Getúlio Vargas, Ministério da Agricultura. E, também, tinha, como sempre, o aspecto dos interesses pessoais, da luta pelo poder individual. Depois tinha também o programa de História, com a Maria Yedda, que não era fácil, era uma mulher brilhante e importante para o Centro, mas não era fácil de lidar. Então, a maneira da gente enfrentar essa situação era dizer não, não há arranjos individuais, a discussão precisa primeiro passar pelo coletivo, entendeu, e isso se transformou numa coisa que é, e eu espero que continue sendo, uma das marcas estruturais do CPDA. Na minha percepção, essas duas marcas são constitutivas.
E aí começou, veio logo o Roberto Moreira, depois veio a Leonilde e mais pessoas começaram a vir. Nessa época nós tínhamos recursos. Vejam bem, nós tínhamos recursos que permitiam que pudéssemos contratar pessoas para dar aula. O Carlos Lessa deu aula, o Otávio Velho, que foi uma pessoa fundamental no início, deu aula e os alunos adoraram. Beatriz Heredia, a querida Beatriz, foi fundamental. Miriam Limoeiro Cardoso oferecia uma disciplina muito prestigiada pelos estudantes. O Bernardo Sorj, que foi muito importante num determinado período, muito leal. Quer dizer, várias pessoas. Nós só fomos internalizar todas as atividades de ensino quando fomos para a Rural, porque aí não tínhamos mais esses recursos para viabilizar a contratação de professores. Mesmo assim, é preciso não esquecer que, num primeiro momento, as pessoas tinham que ser contratadas pensando não apenas na atividade acadêmica, mas pensando também na relação com as Cepas. Por exemplo, o Horário Martins de Carvalho foi contratado não por razões acadêmicas, mas porque ele tinha muito prestígio nas Cepas. Então, era um ponto central, nós tínhamos que estabelecer essa relação, porque, se não, o pessoal das comissões poderia dizer que o programa não tinha nada a ver com eles, era muito acadêmico, sabe, essas coisas que vocês conhecem.
IDeAS: Como você avalia a contribuição do CPDA, ao longo destes quase 45 anos de história, para a formação de uma rede de pesquisadores(as), professores(as), gestores públicos e profissionais comprometidos com o desenvolvimento rural no Brasil e na América Latina?
Nelson: Veja, no início, havia muita desconfiança com relação ao CPDA. É claro, imaginem, no Rio de Janeiro, um programa financiado pelo Ministério da Agricultura, do governo da ditadura, do Geisel, com pessoas que eram razoavelmente desconhecidas. Nesse sentido foi importante ter algumas pessoas como, por exemplo, Ana Célia Castro, que era conhecida, esposa do Antônio Barros de Castro, Paulo Beskow (que ficou preso um ano no Tiradentes como líder estudantil), tinha muitas ligações, era muito amigo, por exemplo, de Darcy Ribeiro. E, além do mais, tinha a Maria Yedda Linhares, que era a coordenadora do programa de História. Mas, tirando o programa de História, o curso era um curso de economia, com perfumaria de ciências sociais. Mas logo em seguida fomos progressivamente começando a fazer uma reformulação já na direção das ciências sociais, ou seja, de reduzir a parte da economia. E aí foi muito importante para nós o apoio que tivemos de gente como Beatriz Heredia, Otávio Velho, Carlos Lessa, Miriam Limoeiro, todo mundo que colaborou.
A partir de um certo momento começamos a conquistar alguns ganhos fundamentais, por exemplo, um programa com a Fundação Ford, o Programa de Intercâmbio de Pesquisa Social em Agricultura (Pipsa). O CPDA tinha um jeitão que era muito importante, que eu ainda acho importante, não era um programa acadêmico simplesmente voltado para o seu umbigo, sempre foi algo também voltado para fora e, nesse período, mais ainda, porque nós éramos vinculados ao Ministério da Agricultura. E sempre tivemos essa diretriz de regionalizar a nossa atuação, os alunos vinham de regiões diversas, não tinha esse negócio de São Paulo e Rio, vinham de todos os lugares. Quando nós fizemos uma pesquisa que eu não falei, mas que foi fundamental, foi uma pesquisa inovadora, o primeiro trabalho que nós fizemos coletivamente, que foi o Persagri, Projeto de Evolução Recente e Situação Atual da Agricultura Brasileira, isso nós fizemos em todas as regiões do Brasil, pegando pesquisadores das diferentes regiões e fizemos uma síntese das transformações da agricultura brasileira nos 70, que foi, eu acho, o primeiro trabalho mais marcante do CPDA, no sentido de colocá-lo dentro do debate acadêmico, digamos. Aí veio o Pipsa, que juntou muita gente, acadêmica e não acadêmica, e que definiu temáticas, grupos temáticos, que iam desde a Amazônia a movimentos sociais. No campo de movimentos sociais no meio rural o debate começa aí em grande medida. É claro que já existia a discussão sobre o tema, a Ruth Cardoso lá em São Paulo já era uma voz importante sobre movimentos sociais, obviamente, mas no que diz respeito à agricultura, o grupo que fazia parte do Pipsa foi a origem dos trabalhos que depois foram desenvolvidos – a Leonilde aqui, Regina, não estava ainda, Regina era da Embrapa, talvez participasse, mas ela entrou mais tarde no CPDA. Tinha também, por exemplo, um grupo sobre grande produção, porque não se falava ainda em agronegócio, tinha o grupo da pequena produção, eram os termos que se utilizava, também um pouco por causa do Ministério, e assim vai. O Pipsa começou algo que foi o início de uma rede que vai se desdobrando e que avança, inclusive, independentemente do CPDA.
Eu quero chamar atenção sobre isso, porque é fundamental hoje nos tempos terríveis que estamos vivendo. O CPDA sempre teve iniciativa de bolar atividades que extravasavam o programa, que iam além, digamos, das paredes da instituição. Isso foi muito fundamental no Pipsa e depois em outros desdobramentos. O Pipsa é um exemplo claro. Depois, em cima do Pipsa, a rede vai se expandindo e vai dar na atual Rede de Estudos Rurais que existe hoje e tem a sua origem no Pipsa, reconhecidamente.
O curso foi se elaborando progressivamente e os alunos tiveram papel central no processo. Nós sempre tivemos, vamos dizer assim, a sorte ou foi nossa capacidade de seleção, lá sei eu, ou as duas ou mais coisas, sempre tivemos alunos que tiveram um papel fundamental dentro do CPDA, fundamental. Os alunos sempre participaram em todos os debates. E, por exemplo, quando a Fundação resolveu acabar com o CPDA, os alunos tiveram uma atuação fundamental na busca por uma nova instituição hospedeira, e aí nós conseguimos a Rural. Por que a Rural? Porque a Rural não tinha nessa época nenhuma pós-graduação no Instituto de Ciências Humanas e Sociais e o CPDA aparecia como uma pós graduação pronta. Eles sabiam qual era a nossa posição, o reitor da época, professor Fausto Aita Gai, era um reitor conservador. Fui quem basicamente conduziu as negociações, porque era o chefe do CPDA (que era um centro na época da FGV/Eiap[20]), e o reitor foi de uma lealdade impressionante durante todo o processo de negociação. Por outro lado, o curso foi se burilando, nós fomos burilando o curso à medida que novos professores foram entrando, as temáticas foram também se redefinindo. E aí vem a entrada na Rural, que inicialmente foi um desastre. Nós fomos lá para Seropédica e o primeiro e segundo anos foram terríveis, porque ficávamos completamente isolados e melancólicos em relação às facilidades que havíamos perdido, mas a Rural foi quem obrigou o CPDA a se organizar academicamente no sentido exigido pelos órgãos federais.
IDeAS: Considerando a estreita relação entre política agrícola e agrária, ainda que de maneira implícita, quais os desafios para que se promova um diálogo entre macroeconomia e política agrícola, de maneira que esta não seja sujeita/penalizada por aquela?
Nelson: Bom, essa é uma pergunta complicada porque dificilmente a política setorial, no caso aqui a política agrícola ou agrária, não vai ser afetada pela política macroeconômica. Vamos dizer assim, a política macroeconômica é a política que tenta ver a economia como um todo e os indicadores macroeconômicos, como, por exemplo, taxa de câmbio, taxa de juros, índices de preços são elementos fundamentais que vão definir, por exemplo, se o Estado vai gastar, onde vai gastar, se vai investir, onde vai investir e coisas desse tipo. Então, dificilmente vai haver situações em que a política macroeconômica não vai afetar a política agrícola ou a política agrária. É claro que o que se pode fazer é ter contrapesos, digamos. É ter uma política agrícola e agrária que possa, uma vez definidas as prioridades, dizer isto tem que ser intocável pela política macroeconômica. E claro que isso vai depender fundamentalmente da política, não é uma questão técnica, como todas estas questões, vai depender de decisões políticas.
O que nós vivemos historicamente no Brasil? Nós vivemos, digamos, primeiro uma política macroeconômica que era associada ao processo de substituição de importações, onde a questão da indústria era fundamental. Então, o fundamental da política macroeconômica era estimular a indústria, a substituição das importações industriais e, obviamente, controlar a inflação. Isto, eu diria na década de 50, década de 60. Depois, especialmente nos anos 80, quando vem a crise da dívida externa, aí se tem uma política macroeconômica que vai ser voltada para enfrentar esta crise, ou seja, para gerar recursos para que os juros da dívida externa fossem pagos. E aí inúmeros setores foram penalizados porque, obviamente, os gastos governamentais foram reduzidos para que os recursos fossem canalizados para o pagamento dos juros. A inflação foi estimulada para que recursos da população se destinassem também ao pagamento dos juros e houve uma política de estimular as exportações agrícolas, porque eram as exportações que geravam dólares que serviam para pagar os juros da dívida. Quer dizer, essa é uma política que se ensaia aí, nos 80, e depois vai assumir, mais recentemente, outras características importantes, que continuam afetando a demanda doméstica de forma significativa e que têm a ver com o que se chama, a partir dos anos 90, de política da austeridade.
Quando o CPDA começou e quando nós começamos a trabalhar com parceiros, por exemplo, um grande parceiro com quem eu sempre trabalhei foi a AS-PTA[21]; outro grande parceiro foi o Ibase[22], porque se formaram grandes amizades e, também, identidades de pensamento, essas coisas todas. Eu me lembro que lá nos 80, a AS-PTA tinha uma revista que chamava, eu acho, Política Agrícola, e era um momento em que a discussão da política agrícola ganhava força nos grupos subalternos e nos movimentos sociais que estavam iniciando aí. Por quê? Porque começa a surgir o que na época se chamava Complexo Agroindustrial e hoje se fala em Agronegócio. Então, por exemplo, você tinha todo o negócio do vinho, do frango etc., várias políticas que afetavam os agricultores e a questão dos preços era muito importante, então não bastava discutir apenas a questão fundiária, a questão da terra, embora ela fosse central. Quer dizer, os mediadores, principalmente, mesmo os grupos e movimentos sociais, tinham também que ter respostas para a questão das políticas públicas. Então inicia aí, algo que a AS-PTA pegou com muita força, uma diversificação da preocupação com as políticas públicas. Porque antes disso, obviamente, na época da ditadura, tratavam de combater o Estado; como se diz na metáfora, os movimentos estavam de costas para o Estado. Com a redemocratização, a questão central é: os movimentos têm que influenciar as políticas para que elas possam ser direcionadas a seu fortalecimento. Aí começa essa discussão que é complexa, a relação entre política agrícola e política agrária, a questão das políticas diferenciadas, por exemplo, que também é uma coisa que faz parte disso.
E aí, a grande relação com a política macroeconômica, que vai ganhar momento no debate brasileiro na década de 80, com a crise da dívida, e depois nós não saímos mais disso, porque ficamos amarrados neste grande debate acerca do Estado. No fundo é esse o debate, o Estado é para quê? E para quem? Na minha visão, é algo que se decide no golpe contra a Dilma. Aí há uma intenção crucial: eliminar a preocupação com um Estado protetor, o que deve predominar é um Estado voltado basicamente para atender aos interesses dos grupos patrimonialistas e corporativos, para alavancar a perspectiva empresarial, o mercado, essas bobagens que eles falam. Me parece que é um pouco por aí e sempre vai ser uma complicação essa disputa, porque vai depender do jogo político e do poder de barganha dos atores em momentos diversos. Eu diria, por exemplo, que nos governos do PT talvez tenha ficado mais fácil enfrentar a questão das políticas agrícolas do que, obviamente, enfrentar a questão da política da reforma agrária, fundiária e tal, tanto que eles abandonaram isso. Então, tem todas essas questões políticas.
Mas entenda que é uma complexidade, porque tem a política agrícola para o agronegócio e a política agrícola para a agricultura familiar. Aí o Consea[23] teve um papel importante em iniciativas como o plano safrinha, o plano safra para a agricultura familiar, porque o plano safra era algo sempre pensado para a agricultura como um todo, o que dizia respeito fundamentalmente aos grupos dominantes, obviamente, incluindo os agricultores familiares modernizados do Sul. Quer dizer, para os demais, antes do Pronaf[24], os agricultores camponeses ou familiares mais empobrecidos, a política que existia era incluída na política regional, nos programas regionais da Sudene[25]. Depois, o Pronaf vai mudar um pouco isso e vai ser a primeira grande política agrícola que vai tratar a agricultura familiar não como apenas regional, mas como tendo abrangência nacional, que tem importância na agricultura nacional, não é um setor à margem. O que, por exemplo, é algo que tradicionalmente os grupos conservadores tentam precisamente reverter, dizer que a problemática da agricultura familiar é uma questão de política social, não de política econômica, tecnológica, etc. Essa, de alguma maneira, foi a contribuição histórica do Pronaf, com todos os problemas que a gente sabe que o programa tem, inclusive de concepção e tudo mais.
IDeAS: Considerando a sua experiência em pesquisas sobre economia política do sistema mundial, com tese de doutorado sobre o regime de Bretton Wood, de onde veio o seu interesse pelo tema do desenvolvimento local e territorial?
Nelson: Veja, o que me jogou para fazer a tese que fiz sobre Bretton Woods foi fruto de uma experiência que também foi muito importante para o CPDA, a do curso “Vittorio Marrama[26]”. Esse curso nós fizemos com alunos latino-americanos e caribenhos, que acabou sendo uma área de concentração dentro do CPDA durante determinado período, e nos levou a uma interação com professores italianos que trabalhavam fundamentalmente a questão internacional, que tinha a ver com a política agrícola europeia e norte-americana, as negociações agrícolas internacionais, o GATT[27] e depois com o surgimento da OMC. A partir de um certo momento, que eu identificaria com a década de 80, essa passa a ser uma temática extremamente relevante dentro do Brasil, porque antes não era. O Brasil, por ser continental, sempre foi relativamente fechado. Vejam que a gente pouco se abria e pouco conhecia os países latino-americanos, por exemplo. Sempre tivemos essa tradição, mas com a abertura da economia, as transformações que foram ocorrendo no capitalismo internacional e suas repercussões aqui dentro, a temática internacional relativa às políticas públicas para a agricultura, as negociações comerciais internacionais, o GATT, e as exportações e importações agrícolas virou um issue muito importante e o Vittorio Marrama teve um papel central para trazer essa bibliografia para dentro do CPDA e eu bebi nisso.
Eu já tinha interesse, sempre me interessei por temas para além da agricultura. Ao mesmo tempo, no Ibase, com o Fórum Social Mundial, veio esse interesse pelo internacional e pelo global, que foi um dos caminhos que segui a partir da década de 80. Eu e uma parte do CPDA também. Um outro caminho, e aí com meu amigo Jorge Romano que foi fundamental, foi um caminho que nós resolvemos traçar, o caminho que chamamos do local. Por quê? Porque o local começou a ganhar relevância política e analítica crescente com as prefeituras do PT na época. Com a descentralização, que vem com a democratização, o local começa a ganhar relevância, junto com o debate local/global, porque tem a ver com a globalização e se tornou um debate teórico ou analítico e político importante. E muitos dos trabalhos que eu e o Jorge participamos fora do CPDA com ONGs, Ibase, AS-PTA e outros, tinham a ver com o local, com experiências locais. Então, Jorge e eu decidimos que precisávamos trazer essa discussão do local para as disciplinas e aí criamos essa disciplina de desenvolvimento local, que foi uma disciplina construída junto com os estudantes. Durante dois ou três anos, ficamos testando bibliografias, testando que tipo de caminho nós íamos seguir e aí seguimos um caminho metodológico que tinha muito a ver com a questão de destacar o poder como uma categoria fundamental nessa abordagem e que, por exemplo, no meu caso, vai ser muito importante depois, já no contexto do Oppa[28], para orientar minha aproximação da questão da política territorial. Essa era uma carência no CPDA, não tinha nenhuma disciplina que tratasse do local. E claro, não esqueçam, mas logo depois que defendi o doutorado, criei disciplinas sobre, por exemplo, políticas públicas internacionais na agricultura, a questão das negociações comerciais internacionais, GATT (depois OMC), porque havia uma expectativa entre vários colegas de que a gente poderia continuar a ter alunos não brasileiros tratando essas temáticas (tivemos alguns alunos africanos), o que acabou não vingando, digamos assim.
IDeAS: Com o impeachment da Presidente Dilma, a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) no governo Temer e a eleição de Bolsonaro, houve um enfraquecimento das políticas de desenvolvimento territorial e local. Poderia comentar sobre os efeitos desse enfraquecimento no cenário atual?
Nelson: Claro. Bom, o cenário atual já é uma complicação! O que é esse cenário atual, realmente? O que está se desenhando efetivamente? Para onde vão esses agricultores familiares e suas representações, para que direções vão caminhar? Para onde nós vamos apostar, digamos assim? O que eu quero dizer é o seguinte, como vai se configurar a resistência desses setores frente à ofensiva antidemocrática atual? Resistência não é um assunto apenas de militância política, mas é também de reinvenção de propostas, de reinvenção de ideias, de reinvenção de políticas públicas, inclusive. Nisso eu acho que estamos apenas engatinhando, ou seja, esse será um debate central.
Como isso vai se configurar, como nós vamos construir a resistência desses setores – nós não, nós vamos pensar, eles é que estão construindo – como nós vamos pensar, analisar e interpretar isso levando em conta tanto a resistência política que eles conseguem montar quanto a resistência em torno das ideias e das propostas que eles conseguem reinventar? Porque nós não vamos voltar ao mundo anterior, então não vai ser simplesmente voltar às políticas que os governos do PT fizeram. Mesmo porque a política de desenvolvimento territorial, por exemplo, que teve pontos muito positivos, também foi muito frágil em vários aspectos. Este é um enorme desafio.
Agora, o desmonte dessas políticas representa um desafio para essas populações que é impressionante. Nós estamos fazendo agora, Karina Kato, Jorge Romano e eu, uma pesquisa para a FAO sobre os impactos da Covid-19 na agricultura familiar e estamos trabalhando com a AS-PTA no território da Borborema, na Paraíba, onde eles têm uma história de experimentos sociais, de fortalecimento dos agricultores, a experiência da ASA[29], convivência com o semiárido, construção de políticas públicas como PAA[30], PNAE[31], as políticas públicas da água, tudo isso. Bom, o PAA, por exemplo, foi completamente interrompido e era fundamental para eles, na ideia de construir canais de comercialização, circuitos de comercialização adequados. Então esses grupos estão sofrendo muitíssimo com o fato de que temos hoje um Estado que é um Estado contrário a esses grupos sociais. Além, obviamente, das perseguições políticas e assim por diante.
Isso foi interessante, ontem eu e Karina passamos o dia entrevistando umas lideranças desses locais, muito interessantes, do município de Remígio (PB). Um pessoal incrível, que tem uma enorme experiência, uma enorme visão e clareza sobre muita coisa. Mas é isto que estou dizendo, como vão ser reinventadas essas políticas? Como fortalecer experiências que já existem e como reinventar outras? Por exemplo, a pandemia da Covid-19 abriu oportunidades para eles reforçarem algumas iniciativas, para outras criou enormes problemas. Para isso nós vamos ter que estar com nossas mentes e corações muito abertos. O que nós não podemos é querer pensar o futuro com os olhos do passado, se não vamos ficar repetindo coisas, muitas delas que não funcionaram bem e que hoje precisam ser reinventadas ou mesmo abandonadas. Como reinventar, por exemplo, a reforma agrária hoje? A reforma agrária é fundamental, continua fundamental, mas como vamos reinventá-la politicamente, analiticamente e assim por diante?
IDeAS: A sua última consultoria para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) envolvia o tema do desenvolvimento territorial. Como tem sido o desenvolvimento da pesquisa e quais os principais apontamentos, até o momento?
Nelson: Veja, em relação a essa oportunidade com a FAO, há um amigo, que foi inclusive meu orientando no mestrado do CPDA, Adriano Campolina, que foi da ActionAid Brasil, depois da direção da ActionAid Internacional e, no final do período do Graziano como diretor geral da FAO, passou a fazer parte dos quadros técnicos dessa organização. Ele é muito amigo do Jorge Romano por causa da ActionAid e meu também, porque fui orientador dele. Ele fez uma dissertação sobre o G20, o grupo da OMC em Cancún, em 2003, na época do início do governo Lula. Bom, ele estava interessado em retomar o trabalho com a questão territorial. Então, a primeira coisa que fizemos (Karina, Jorge e eu) foi entrevistar alguns dos experts que ele selecionou, da FAO e de outras organizações, para tentar sistematizar a visão desses técnicos sobre o que foram as experiências de aplicação da abordagem territorial nas políticas públicas de desenvolvimento rural, que avanços foram obtidos, que obstáculos foram enfrentados, que balanço já pode ser feito sobre elas e o que esse balanço sugere para o trabalho futuro da FAO nesse campo. Depois realizamos uma breve revisão da literatura sobre a abordagem territorial, que foi feita a partir do que tínhamos produzido, durante vários anos, no Oppa, no CPDA e na literatura latino-americana mais do que da europeia ou norte-americana. Isso ia ter desdobramentos específicos, mas aí veio a Covid-19 e mudou tudo.
O objetivo passou a ser, então, observar e analisar os impactos da Covid-19 na agricultura familiar mantendo, obviamente, essa ideia de abordagem territorial e a questão do desenvolvimento territorial. Tomamos o Território da Borborema (Paraíba) como projeto piloto porque é uma experiência especial (e longa) e sobre a qual já trabalhamos anteriormente e sobre a qual foi produzida muita informação relevante, estamos trabalhando com a AS-PTA que conhece muito o território, é uma das protagonistas da experiência e realizou/viabilizou muitos estudos sobre ela. O que estamos ensaiando é uma metodologia sobre os impactos da pandemia e um olhar sobre o território que distinga os processos de territorialização e os processos de desterritorialização que incidem ou incidiram sobre o mesmo.
É possível distinguir diferentes tipos de territorialização. Pode predominar uma territorialização que é feita pelo governo, por exemplo, pela SDT[32], no governo Lula, onde fundamentalmente os territórios foram criados pelo governo. É claro que essa política não parte do nada, de um vazio, mas foram territórios criados pelo governo, o que caracteriza uma territorialização governamental. As questões que ganham relevância nesse caso são questões específicas, como a questão da governança do território, do próprio desenvolvimento, do protagonismo territorial, entre outras.
Mas há outros tipos de territorialização. A territorialização que é um grande problema hoje na América Latina e que não é tão tratada no Brasil é a territorialização que as grandes empresas agroextrativistas, do neoextrativismo, estão fazendo. São territorializações que estão destruindo o próprio território, as identidades, os ambientes agroecológicos e tudo mais. Existe também um outro tipo de territorialização que são as territorializações que os movimentos sociais, as ONGs, os grupos sociais organizados fazem nos territórios e a Borborema é um caso claro desse tipo. Então, quais são os processos de territorialização que devem ser observados e analisados em um caso como este de construção social do território? Quer dizer, quais são os processos que são importantes e que levam a essa construção social do território e de uma identidade territorial não imposta? Não se trata mais do território como uma unidade de planejamento, relevante para descentralizar as políticas públicas, como era o caso da territorialização governamental. Essa abordagem coloca uma série de questões interessantes entre as quais a atenção que deve ser dada à existência de processos concomitantes de desterritorialização. Na Borborema, para ter uma ideia, volta à cena (talvez nunca tenha saído) a eterna concentração fundiária, a violência aumentou significativamente, não a violência política contra os agricultores, mas a violência via crime organizado e agora, com a pandemia, a violência contra as mulheres e contra os jovens. O desmonte das políticas públicas pós 2016 representa importante processo de desterritorialização. Bem como o avanço dos grandes supermercados durante a pandemia etc. Há uma série de questões que apontam na direção de processos de desterritorialização, que vão desconstruindo ou colocando em risco as experiências de territorialização realizadas anteriormente. E que colocam novos desafios à capacidade de resiliência desses grupos e redes sociais frente a catástrofes políticas e sanitárias como as que estamos vivenciando. Então, hoje estamos metidos nessa discussão.
A questão do desenvolvimento, eu te digo, honestamente, é uma questão que não me interessa mais como antigamente, sabe, porque acho que ela está muito, muito, complicada (há muito tempo, na verdade). O que é desenvolvimento hoje? O que significa exatamente esse conceito? A que o seu uso nos amarra? Acho que a problemática que se buscava elaborar em torno dele pode ser substituída, num caso como esse que estamos falando, por exemplo, pela identificação e pela análise dos processos de territorialização que visam construir socialmente o território e que, obviamente, vão ter que ter resposta para questões que os chamados “projetos de desenvolvimento” têm crescente dificuldade de encarar e de construir em um mundo multidimensional e multissetorial. De onde as pessoas vão tirar o ganha-pão, de onde virá a renda, como vão ser enfrentadas as necessidades da produção, em particular de “comida de verdade”, dos circuitos de comercialização, a questão das mulheres, dos jovens e do fortalecimento desses agricultores(as) como cidadãos(ãs)? É impressionante isso na Borborema, mesmo depois de todas as catástrofes – eles tiveram também o que foi a maior seca do século, de seis ou sete anos, de 2012 a 2017 se não me engano – continuam reinventando soluções, conservando uma considerável capacidade de resiliência e buscando distinguir os desafios futuros. Então, essas são questões para mim mais relevantes do que essa discussão de desenvolvimento, que não sei se cabe mais. Porque se ficarmos presos ao desenvolvimento, ficaremos presos inevitavelmente à discussão crescimento versus desenvolvimento (sabendo que o crescimento é crucial para acomodar as contradições e as desigualdades próprias do capitalismo, o que não está claro se continuará sendo possível). A questão ambiental, como ela entra nisso? Nós vamos ter que mudar esse facho, é difícil.
IDeAS: Vamos ter que mudar o nome do programa então, porque temos desenvolvimento até no nome [risos].
Nelson: Isso, quem sabe, pode ser algo a ser decidido nos tempos futuros. Manteve-se a sigla CPDA porque já era suficientemente conhecida e identificava o coletivo de professores e alunos do programa. Mas isso não evitou um outro racha importante que ocorreu no programa quando assumimos o curso ‘Vittorio Marrama’ patrocinado pela FAO. Esse racha foi, na minha opinião, brilhantemente enfrentando quando o coletivo de professores decidiu criar duas áreas de concentração (além da do ‘Vittorio Marrama’), que incorporaram visões diversas defendidas por dois grupos de professores e que depois se mostraram relativamente complementares. Uma foi chamada ‘desenvolvimento e agricultura’ (DA) e a outra ‘sociedade e agricultura’ (SA). Eu fazia parte de DA, juntamente, por exemplo, com Jorge, John, Renato, Leonilde, Regina, Sérgio, Guillermo (que não está mais no CPDA). Enquanto, da outra área, SA, faziam parte Roberto, Zezé, Silvana, Angela, Luiz Flávio (esses três últimos não estão mais), Ly [Eli], Raimundo e Hector, por exemplo. O grupo de SA introduziu novas temáticas dentro do CPDA, nessa área de sociedade e agricultura. Trouxe, de fato, temáticas que nós não trabalhávamos antes. Em minha opinião, além de termos mantido o CPDA intacto, essa divisão foi muito benéfica no momento, promoveu avanços no programa, de modo que novas convergências foram construídas de tal modo que essas duas áreas de concentração foram naturalmente extintas ao longo do tempo. É interessante levar em conta, nesses períodos mais recentes, que há, no CPDA, um predomínio de antropólogos em relação a economistas, alterando a situação inicial. Os últimos que entraram no corpo de professores são, em maioria, antropólogos. Apesar de considerar que as mudanças foram relevantes – além de que a bendita Capes[33] exige isso, pois somos um programa de ciências sociais – temos de ter cuidado também para não transformar o curso do CPDA em um curso de antropologia, porque aí vamos retroceder, do meu ponto de vista. Ou seja, nós temos que tentar manter essa identidade que nunca vai ser resolvida e esclarecida satisfatoriamente que é a multidisciplinaridade nas ciências sociais. Isso é que nem a democracia, você nunca alcança, mas é um objeto de luta, é algo que se busca, é um sinalizador da direção em que devemos avançar. Se olhar a estrutura hoje e como era no início do programa, é uma diferença entre vinho e água metaforicamente.
IDeAS: A pandemia provocada pela Covid-19 amplificou as desigualdades sociais do país e retomou o debate em torno de um projeto de renda mínima. Quais seriam os desafios para a efetivação desta medida, seus impactos e limites políticos, econômicos e sociais?
Nelson: Eu não consigo responder tão certinho essas indagações, mas acho que esse tema da renda mínima é um dos temas centrais pós-pandemia. Como ele vai ser definido, vai depender das forças políticas e da capacidade que os diferentes grupos sociais vão ter para peitar isso, de retomar certo protagonismo do Estado, porque os grupos conservadores vão continuar com essa história da grande ameaça da crise fiscal e blablablá... pois é, politicamente, um blablablá. Não é que a ameaça não exista, existe, mas é um blablablá a maneira como colocam e utilizam esse argumento. Este para mim é um tema central porque, entre várias coisas, o capitalismo não emprega mais, ou seja, nós estamos vivendo um momento em que, de fato, não se sabe qual vai ser o futuro. Nesse sentido, é quase um momento de barbárie, porque o capitalismo não emprega mais, está completamente financeirizado e a concentração da renda e da riqueza é brutal. O crime organizado vai ganhar influência, sempre esteve associado ao capitalismo, mas agora vai ganhar e ganha uma influência central nas estratégias dos pobres. E provavelmente a aliança entre extrema-direita e crime organizado será aprofundada.
Por exemplo, essa expressão – isso é algo que estou começando a falar agora, espero que não seja irresponsável – “inclusão social”, eu acho que a gente poderia riscar de nosso "caderninho", porque essa possibilidade deixou de existir há muito tempo, não existe mais tal como era imaginada nas décadas de 1950 e 1960 e o que vai vir, veja bem, vai incluir de que perspectiva? Porque hoje a heterogeneidade é tão grande, a fragmentação é tão grande; os grupos, nós estamos falando de quem? Estamos falando dos que não têm casa, dos agricultores pobres de beira de estrada, dos que têm empregos precários, de quem estamos falando? O que significa incluir para essas pessoas? Porque todos os negócios de inclusão, urbanos e rurais, foram instrumentos de homogeneização ou de exclusão dos pobres, da sua cultura, dos seus modos de vida, das modalidades e das estratégias de ganharem a vida. Esses são pontos centrais, os quais vamos ter de enfrentar e que nos complicam porque não conseguimos resolver isso com algumas palavras mágicas, como desenvolvimento territorial ou políticas públicas e tal. Então, eu diria, que um dos primeiros desafios, que nós só vamos esclarecer, se é que vamos conseguir esclarecer, no debate, na luta e na reflexão, é o de quais são os nossos novos temas. Os novos podem ser velhos, mas eles têm de ser reinventados. Por exemplo, a reforma agrária, que vai ser sempre um tema prioritário, como vamos reinventá-la hoje? Esse é o ponto.
A renda mínima é um novo tema central, que tem limites, óbvio, que pode ser composto como uma coisa auxiliar para, vamos dizer assim, criar um esquema enorme de clientelismo. Pode ser, mas para os pobres sempre, de alguma maneira, foi assim. Isso que chamam de populismo, fez e faz parte da política. A política não é algo tecnocrático. Isso é algo que os economistas gostam: o de conceber um tecnocrata que vai fazer a política segundo a razão que, para eles, é a razão econômica. Isso não existe. É óbvio que não existe. Então, se você não for alguém que mobilize as populações, adeus, não tem relevância popular. Aí chamam isso de populista de esquerda ou de direita, como se tivesse alguém, político, que não fosse populista. Quem é esse alguém? O Fernando Henrique, o Meirelles? Quem é esse que não é populista? Então, há uma série de novas questões que teremos que começar a enfrentar.
Um problema é que é impossível pensar o novo a não ser a partir do velho, porque foi o velho que nos fez e faz, e pensar não cai do céu. O enorme desafio é fazer com que as bagagens que estão incrustadas em nós não nos impeçam de pensar, olhar, colocar novos óculos que permitam ver a realidade de uma forma que os óculos antigos não te permitem mais ver. Eu gosto dessa metáfora dos óculos porque acho que é exatamente isso, a realidade está aí, você enxerga de acordo com os óculos que usa. Esses óculos são compostos pelas suas crenças, suas ideologias, sua visão de mundo, seus conceitos, suas ideias e assim por diante. Esse vai ser um enorme desafio para o CPDA, para todos nós, para os movimentos sociais, para os partidos políticos e para a esquerda, de uma forma particular. A esquerda que eu diria está, no fundamental, sem pai nem mãe desde a falência da Revolução Russa e da social-democracia do pós-guerra. A partir da década de 1970 o que fizemos foram adaptações, mais ou menos generosas, ao avassalador predomínio do pensamento e da política neoliberais em todo o mundo (“o pesadelo que não acaba nunca!” como dizem Dardot e Laval). Os governos do PT fizeram coisas importantes, sem qualquer dúvida, mas anunciaram a expectativa de mudanças mais do que realizaram mudanças efetivas.
IDeAS: Para finalizar, como você avalia o possível comando da OMC por uma mulher africana[34], que alega defender os países em desenvolvimento? E quais os possíveis efeitos da vitória de Joe Biden para a conjuntura política mundial e as relações com Brasil e América Latina?
Nelson: Do acompanhamento da OMC estou muito afastado. Teve um momento que eu estive muito envolvido, que foi lá em 2003, fui inclusive à conferência da OMC em Cancún, no México. Na época, escrevi bastante sobre isso, mas depois me afastei, chegou um ponto que cansou e perdi interesse. Mas veja bem, naquela época, 2003, esse foi um momento importante do governo Lula. Havia uma ofensiva tanto da União Europeia quanto dos Estados Unidos insistindo na abertura das nossas economias e em negociações agrícolas que fossem favoráveis fundamentalmente a eles ou nas quais fariam algumas concessões, desde que os países, vamos dizer não centrais, os países periféricos, cedessem em outros temas, como, por exemplo, indústria, serviços e outros. Neste momento, o Brasil liderou um grupo que se chamou na época de G20 – e que não tem nada a ver com esse G-20 de que se fala hoje – com países que eram da América Latina, da África, da Ásia e que inviabilizaram a Conferência de Cancún. Naquele contexto chegou-se a pensar que aquele G20 poderia trazer alterações significativas nas negociações internacionais, como se depois de muitas décadas, ecoando os apelos de Raul Prebisch, estivesse sendo recriado um bloco de países periféricos para enfrentar essa negociação. Isso durou uns três anos, eu acho, depois desapareceu, porque o Brasil foi se enquadrando, mesmo no governo Lula e mesmo com Celso Amorim, foi se enquadrando progressivamente ao que a Europa e os EUA queriam, para participar em determinados grupos privilegiados, seletos, que conduziam as negociações, mesmo que por baixo do pano. Inclusive sofreu muitas críticas, da Índia, por exemplo, que foi um dos países do grupo que sempre teve uma participação muito ativa nas negociações internacionais, desde Bretton Woods.
Há uma coisa interessante nessas organizações como a OMC: cada país tem direito a um voto e com a heterogeneidade e o grande número de países que participam é muito difícil construir consensos e muito facilmente seu funcionamento é inviabilizado. Além do mais, o final dos 1990 foi um momento de auge do neoliberalismo e da retomada da hegemonia norte-americana. Nesse contexto, todos os temas importantes passaram a ser tratados pela OMC, que virou a única organização internacional com relevância política adequada às exigências dos EUA. Assim, transgênicos foram para a OMC, tudo ia para a OMC, e isso inviabilizou ainda mais seu funcionamento pelo congestionamento temático que criou, de tal forma que nunca conseguiram tomar decisões e, na prática, abandonaram progressivamente a OMC, pelo menos em relação às enormes expectativas originadas quando de sua criação, e voltaram aos tratados bilaterais, regionais, coisas desse tipo.
Então, vejam, pode ser que esse novo movimento atual que vocês mencionam seja algo interessante, mesmo que transitoriamente. Não é que isso vai resolver, mas se conseguir ocupar alguns espaços onde alguns blocos de países periféricos consigam definir objetivos comuns, propostas comuns e batalhar por elas, isso tem a sua importância. Não é a saída, certamente não vai ser a saída. E, provavelmente, se essa possibilidade ganhar importância na OMC, os países centrais vão inviabilizar ainda mais a OMC, ou se desinteressar. De repente, podem começar a enfrentar os problemas que foram para a OMC de outras formas. Eu diria que não há que se opor a isso, há que olhar para isso como um observador participante, mas sem esquecer o passado e estar alerta que pode não significar absolutamente nada. Pode não significar nada. Ou pode ser uma frente, porque o que terá que acontecer, certamente, será a construção de frentes que terão de ser abertas, frentes as mais diversas, envolvendo diferentes espaços, grupos. Espaços de movimentos sociais, por exemplo. Espaços de governos que em alguns lugares podem ser mais progressistas. Como ocupar algum desses espaços e como fazer convergir algumas dessas experiências? Até hoje não se conseguiu. O Fórum Social Mundial foi uma tentativa disso, a partir da chamada sociedade civil, mas não conseguiu, chegou a um ponto que esvaziou. Na OMC, do ponto de vista dos governos, houve a experiência de Cancún que eu mencionei, uma certa tentativa que durou dois ou três anos e depois esvaziou. Muito complicado. O que remete à questão internacional.
A questão internacional é obviamente muito complexa e, também, um pouco difícil de ver para onde vai. O que se tem hoje de central? Obviamente, os EUA, a China, a Rússia – que continua tendo importância como sempre teve, mesmo antes da URSS –, provavelmente a Índia vai ganhar momento. Na Europa, a Alemanha tem sua importância, mas a Europa acho que continua como um paquiderme político, que não se movimenta ou que sempre se movimentou com os EUA. Os EUA continuam sendo, vamos dizer assim, o país mais importante e do ponto de vista militar, obviamente, ainda é o mais importante, mas a China está crescendo significativamente, inclusive militarmente. É óbvio que é impossível hoje os EUA deixarem de considerar a China.
Então, qual vai ser a estratégia norte-americana? A estratégia norte-americana, aí eu sigo o que fala o José Luís Fiori, é uma estratégia de tentar manter os seus interesses fundamentais, mesmo que, para que isso ocorra, sejam destruídas as instituições que ele mesmo criou para manter sua hegemonia e expandir seu poder global. E, também, não há mais nenhum compromisso, como havia antes, que os EUA tinham por causa da Guerra Fria, de tolerar ou ajudar alguns países a se desenvolverem, o que a literatura chamava de “desenvolvimento a convite”. Isto aconteceu inclusive com o Brasil. Hoje os EUA não têm nenhum compromisso com isso. Não consideram mais que seus valores e ideias liberais vão tomar conta do mundo, significando o fim da história. Eles sabem hoje que os diferentes povos (no Oriente Médio, na Ásia, por exemplo) estão pouco ligando para os valores e as ideias deles. E eles também não têm mais ilusões quanto à capacidade do ideário liberal fundamentar as instituições e os valores do sistema internacional. Então, como diz o Fiori, estão envolvidos na imposição de uma nova ética, que define coercitivamente os limites do possível no pós-Guerra Fria, e cujo compromisso fundamental é com a manutenção e, se possível, expansão de seu poder global.
A vitória do Biden, eu acho que é muito importante, sem nenhuma dúvida. É que nem alguém aqui, digamos, mesmo conservador, que derrote esse presidente psicopata, é algo muito importante. Eles são conservadores. Não esqueçam, a vice é uma mulher impressionante, como figura, como performance, mas ela é conservadora. O Biden é um conservador. Não sei se viram um vídeo que saiu com uma fala do Sanders cobrando atitudes dos eleitos. Ele [Biden] vai ser muito cobrado pelo partido democrata. Tem uma parte do partido democrata que foi essencial para sua eleição, que foram os jovens e mesmo uma ala mais progressista de movimentos de base, o que eles chamam de grassroots, e se eles não atenderem a esse pessoal, os jovens, por exemplo, daqui a quatro anos votam em candidatos opostos, num Trump. Em suma, será um imbróglio não muito simples de enfrentar.
É possível, eu acho, que internacionalmente haja um certo impacto e que no Brasil também. Por exemplo, o presidente atual vai perder essa relação política meio mítica que ele criou com o Trump, como se ela lhe desse atributos obviamente inexistentes. Porque foi ele quem criou, o Trump nunca deu a mínima pelota para ele. A direita internacional, que apoiou o Trump, deu, mas o Trump nunca deu a mínima para ele. Ele que usou a ligação com o Trump de uma forma importante, e, claro, expressando um servilismo total aos EUA. Então, é possível que haja alguma mudança nesse sentido, não sei. Não vai ser nada muito importante, não pensem que o Biden vai entrar falando grosso que a Amazônia tem que ser salva ou que isso ou aquilo, não vai acontecer. Pode ser que caminhe para uma postura mais liberal, no sentido do padrão liberal norte-americano, com a inclusão dos direitos humanos em suas narrativas, uma retomada das organizações internacionais, uma certa retomada porque essas organizações sempre estiveram, a partir da década de 1950, a serviço dos EUA, de uma maneira ou de outra. É provável também que não seja mais possível deixar de levar em conta a questão ambiental de forma mais séria do que o governo norte-americano fez até hoje. E talvez internamente ocorram algumas iniciativas importantes que podem impactar no pensar sobre o futuro, especialmente da economia. Mas eu não espero mudanças na política externa norte-americana, vai continuar, provavelmente, com a mesma perspectiva fundamental.
E essa história da disputa internacional em torno da tecnologia 5G é central. E a China é um enorme ponto de interrogação. Porque a China não é apenas capitalista, a China é mais do que capitalista, a China é um império milenar que tem valores, ideias, maneiras de ser, DNAs, que são muito diversos dos europeus, ocidentais. O capitalismo foi uma invenção europeia. É claro que ele entrou na Ásia de uma forma total, claro que a China é capitalista, mas é mais do que isso. Eu não sei dizer exatamente o que significa “é mais do que isso”, mas tenho uma intuição de que é mais do que isso.
Há outra coisa que eu chamaria atenção. Que o Trump foi derrotado não há dúvidas, mas vamos esperar que o Biden leve. Parece que a Suprema Corte já topou recontar os votos de alguns lugares, não sei, é uma Suprema Corte conservadora, vamos ver. Eles destruíram as instituições, como as instituições foram destruídas aqui. Há muitas semelhanças entre Brasil e EUA nesse sentido, dentro das enormes diferenças. E não vamos esquecer que nós não estamos tratando, pura e simplesmente, com um fenômeno de populismo, como esses economistas democratas, e que são interessantes, Stiglitz, mesmo Piketty e outros, destacam.
Nós estamos falando de sociedades onde se estabeleceu uma clivagem brutal no tecido social. Vocês vejam a votação que Trump teve, como aqui, uma clivagem brutal. Tomara que eu esteja errado, mas a sensação que tenho é que isso veio para ficar. Então, isto significa o que? Quais são os valores que ainda são considerados comuns numa sociedade dessas? O que vamos buscar como valores comuns? O bem comum? O que é o bem comum para os adeptos do Trump e para os contra o Trump? Para os que apoiam o presidente psicopata daqui e para os que são contra? É muito complicado. Além do mais é muito complicado que o capitalismo não empregue mais, que a financeirização chegou a níveis absolutamente brutais, que 10% das pessoas no topo da pirâmide social, nos EUA, se apropriam de 90% da riqueza financeira, das rendas da riqueza financeira e das rendas do trabalho. Então, será possível manter uma sociedade dessas? Com que consequências? Com que custos humanos e sociais? A questão, por exemplo, da renda mínima, vai ser provavelmente um debate nos EUA. Como vai ser conduzido isso, como é que eles vão enfrentar essa questão? A questão da globalização entrou em crise, porque a clivagem entre grupos e países é também um dos resultados da globalização, que os grupos ligados aos democratas, Clinton, e seus economistas, não quiseram ver. No essencial, só viram virtudes na globalização e não as destruições que provocou, e essas destruições tiveram seu papel no surgimento dos psicopatas na política em diferentes países.
Nelson Giordano Delgado Possui graduação em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1967), mestrado em Economia - New York University (1974) e doutorado no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2000). É professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Economia e de Ciências Sociais, com ênfase em temas rurais, principalmente: territorialização, políticas públicas e desenvolvimento rural; atores sociais e desenvolvimento local; agricultura familiar; agricultura e economia brasileiras; políticas públicas; economia política do sistema mundial; regime comercial internacional e agricultura. Tem realizado consultorias para governos, ONGs e organismos internacionais em campos diversos, que incluem, além dos já citados, a experiência do Fórum Social Mundial. ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/9701685268562207 |
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 15, 1-25, e021002, jan./dez. 2021 • ISSN 1984-9834
[1] A entrevista está disponível em: https://revistaideas.ufrrj.br/ojs/index.php/ideas/article/view/236/254.
[2] Entrevista realizada no dia 10 de novembro de 2020, através de videochamada.
[3] Partido Social Democrático (PSD)
[4] Ato Institucional nº 5 (AI-5), baixado em 13 de dezembro de 1968.
[5] Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão que atuou como instrumento de repressão e tortura durante os períodos de ditadura no Brasil.
[6] Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
[7] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
[8] Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE), da Fundação Getulio Vargas (FGV).
[9] Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), da Universidade de São Paulo (USP).
[10] Instituto de Estudos e Pesquisas Econômicas (Iepe), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
[11] Ministério da Educação (MEC) e United States Agency for International Development (USAID).
[12] Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
[13] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
[14] Na época, chamava-se Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola (CPDA).
[15] Pontifícia Universidade Católica (PUC).
[16] Partido dos Trabalhadores (PT).
[17] Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
[18] Partido Comunista Brasileiro (PCB).
[19] Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8).
[20] Escola Interamericana de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV/Eiap).
[21] Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA).
[22] Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
[23] Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
[24] Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
[25] Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
[26] Para saber mais sobre o assunto, ver: DELGADO, N. G. O Curso “Vittorio Marrama”: uma experiência eurolatino-americana de mestrado em políticas agrícolas e desenvolvimento rural. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/84/80.
[27] General Agreement on Tariffs and Trade (GATT).
[28] Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (Oppa).
[29] Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).
[30] Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
[31] Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
[32] Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
[33] Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
[34] A OMC foi comandada nos últimos sete anos pelo diplomata brasileiro Roberto Azevêdo, que deixou o cargo em agosto de 2020, um ano antes do fim de seu mandato. A organização está em fase de escolha de sua nova diretoria, com Ngozi Okonjo-Iweala, economista e ex-ministra das Finanças da Nigéria, tendo recebido amplo apoio dos países membros, com exceção dos EUA, e podendo ser a primeira mulher e representante do continente africano a chefiar a organização.