Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 15, 1-4, e021004, jan./dez. 2021 • ISSN 1984-9834
Resenha • Acesso aberto
O antirregionalismo caipira de Carlos Alberto Dória:
entre sítios e panelas
Carlos Alberto Dória's capira anti-regionalism: between farms and pans
Nayara da Silva Stockler[1]
Livro resenhado: DÓRIA, Carlos Alberto; BASTOS, Marcelo Corrêa. A culinária caipira da Paulistânia – A história e as receitas de um modo antigo de comer. São Paulo: Três Estrelas, 2018. Palavras-chave: alimentação; caipira; regionalismo. | Submissão: Aceite: |
Citação sugerida DÓRIA, Carlos Alberto; BASTOS, Marcelo Corrêa. A culinária caipira da Paulistânia – A história e as receitas de um modo antigo de comer. São Paulo: Três Estrelas, 2018. Resenha de: STOCKLER, Nayara da Silva. O antirregionalismo caipira de Carlos Alberto Dória: entre sítios e panelas. Revista IDeAS, Rio de Janeiro, v. 15, p. 1-4, e021004, jan./dez. 2021. Licença: Creative Commons - Atribuição/Attribution 4.0 International (CC BY 4.0). | Publicação: |
Certamente uma pandemia não estava nos planos de Carlos Alberto Dória e de Marcelo Corrêa Bastos ao inaugurarem em julho de 2020 o seu ambicioso projeto conjunto: o restaurante Lobozó, localizado no urbano e descolado Beco do Batman, na capital paulistana. O nome do restaurante é uma alusão aos “mexidos” de sobras de refeições misturadas a ovos e farinha de milho ou mandioca, uma prática muito comum de reaproveitamento da alimentação do caipira e que serve de inspiração ao cardápio do restaurante, além de tema de estudo do livro A culinária caipira da Paulistânia – A história e as receitas de um modo antigo de comer, publicado em 2018 pela editora Três Estrelas.
Aos mais desavisados, que julgam o livro pela capa, a obra pode parecer apenas um resgate histórico de receitas antigas da culinária popular brasileira. Contudo, ela vai muito além ao propor a revisitação do tipo ideal caipira, traçando uma abordagem histórico-cultural a partir de um recorte geográfico distinto, baseado na expansão do interior do território brasileiro. Como uma proposta antirregionalizante, defende este novo recorte como fator determinante de uma análise cultural da ocupação, produção e alimentação, que estruturaram aquilo que os autores definem como “culinária caipira”.
Uma das riquezas da proposta desta obra está no fato de ter sido escrita a duas mãos – um sociólogo e um chefe de cozinha, ambos estudiosos da cultura caipira naquilo que lhes compete como prática intelectual e gastronômica. Assim, a introdução elaborada pelo chefe Marcelo Corrêa Bastos é antes de tudo um relato pessoal de cunho identitário, que já anuncia e reafirma a temática da obra pelas vias histórica, cultural, literária e geográfica de Carlos Alberto Dória. A segunda parte do livro é inteiramente dedicada a uma longa descrição de técnicas, ingredientes e pratos que substanciaram a alimentação dos caipiras entre os séculos XVI e XIX, majoritariamente baseada no cultivo e no consumo do milho, da abóbora e do feijão, além do uso indiscriminado da carne e da gordura de porco como base proteica e calórica desta dieta.
Sua grande defesa está na construção de um caráter uniforme das práticas alimentares de produção e de consumo que se deu no processo de interiorização do território brasileiro, a partir da região chamada de sertão do leste, que engloba as regiões do Vale do Paraíba (São Paulo), Sul de Minas e Vale do Rio Doce (Espírito Santo e Rio de Janeiro) como berço desta cultura, mas que se expandiu em direção aos territórios de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, chegando até ao Rio Grande do Sul, dando forma a grande região denominada como Paulistânia. É uma abordagem cartográfica construída a partir da identificação dos modos de comer dos exploradores e habitantes deste território para além dos limites e fronteiras políticas e históricas do Brasil, traçadas inclusive em momento precedente a elas.
Esta abordagem metodológica e cartográfica, apesar de conservadora no nome, é inovadora no processo, pois é fruto da proposta do Atlas das Representações Literárias de Regiões Brasileiras, desenvolvido pelo IBGE (2006) e que busca construir uma nova regionalização a partir dos elementos culturais e históricos identificados em obras literárias brasileiras. A denominação dos sertões, por exemplo, considera a ausência da configuração de Estado e das instituições representativas do poder metropolitano durante o Brasil Colônia.
É sobretudo uma defesa da regionalidade contra a regionalização efetivada pela ação do Estado (HAESBAERT, 2010), que tem como ponto de partida os estudos dos hábitos alimentares na obra documental História da Alimentação no Brasil, de Câmara Cascudo (2004), mas que se atualiza em uma crítica de apropriação cultural regionalista da culinária caipira como patrimônio exclusivo do estado de Minas Gerais. Eis aqui a segunda defesa e a conclusão desta obra, que reside na desconstrução do mito da culinária mineira.
A abordagem cartográfica elaborada a partir dos recortes da Paulistânia é o que fundamenta os elementos comuns da alimentação deste vasto território, sem deixar de referenciar particularidades relativas aos domínios vegetativos locais, que trazem o pequí e o pinhão como alimentos específicos de realidades biogeográficas, mas sempre utilizados dentro do ordenamento da base da dieta caipira. Sua preocupação maior não está em estabelecer distinções entre os biomas do cerrado e das matas de araucária, mas sim em estabelecer as diferenças entre a alimentação das fazendas e dos sítios, sendo estes, o lugar de manifestação da cultura caipira e de toda uma complexidade de elementos que vão desde o desenvolvimento de técnicas agrícolas, de domesticação animal, até seu caráter arquitetônico genuíno.
Os sítios como lugares de construção do espaço vivido, da cultura e da vida caipira se desenvolveram como formas de ocupação e de produção da subsistência, consolidadas pelo declínio das atividades mineradoras no século XVIII. Deram origem aos bairros rurais, com a fixação dos mamelucos no território em um sistema de insegurança dominial de terras que substituiu a insegurança do nomadismo expansionista. Suas atividades de subsistência nas hortas, pomares e criadouros passaram a determinar um modo de vida e de alimentação no qual esta obra tem como compromisso exaltar a diversidade, e não sua miséria, como o fez Antônio Candido (2017) ao observá-la em seu momento mais crítico: a transição rural-urbana do surto industrial paulista em meados do século XX, que levou à introdução de novos hábitos alimentares e do trabalho assalariado.
Para este livro coube o compromisso de demonstrar certa riqueza culinária adaptativa, inventiva e dialética entre os alimentos e práticas da diversidade complexa dos diferentes povos indígenas brasileiros e da incorporação dos portugueses a esta realidade, sendo a culinária caipira uma síntese desse processo. A obra não ambiciona uma narrativa que dê ênfase aos processos de dominação e violência aos quais os povos indígenas foram submetidos, não considera a existência de contribuições da cultura africana nesta dieta, nem tampouco problematiza o movimento das bandeiras. Sem constrangimentos, resgatam e utilizam o termo “Paulistânia”, mesmo que altamente atribuído ao sentido político e regionalista, que fundamentou inclusive defesas separatistas e eugênicas de intelectuais paulistas, como o conservador Alfredo Ellis Jr. Contudo, como já alertava Darcy Ribeiro (2006, p. 108) sobre as contradições do povo brasileiro: somos tanto a carne dos índios supliciados como as mãos possessas daqueles que a supliciou.
Ao defenderem a culinária caipira da Paulistânia, os autores buscam um resgate das origens da alimentação brasileira e uma explicação cabível ao fato de que muitos pratos considerados “típicos mineiros” são também a base cultural e histórica alimentar de outros estados do país. Especificamente no caso de São Paulo, o processo de regionalização e construção da identidade moderna e industrial afastou as heranças caipiras, entendidas como signos do atraso e do subdesenvolvimento. Em contrapartida, Minas Gerais apropriou-se deste imaginário rural para a sedimentação do mito da mineiridade, fortemente amparado por sua representação simbólica e vivida nas pequenas cidades, aliadas a um processo de construção da identidade forjada em rotas e circuitos turísticos, exportando paisagens, terroirs mineiros e produtos de indicação geográfica.
Retomar a culinária caipira nos dias de hoje é não restringir a discussão aos processos de regionalização e regionalismos, mas é também a possibilidade de problematizar questões como as práticas agroecológicas, a segurança e a soberania alimentar e as possibilidades que essa culinária caipira nos mostra através das memórias simbólicas e materiais dos sítios e panelas que alimentaram e ainda alimentam muitos brasileiros neste vasto território da Paulistânia.
Referências
CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Edusp, 2017.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, 2004.
DÓRIA, Carlos Alberto; BASTOS, Marcelo Corrêa. A culinária caipira da Paulistânia – A história e as receitas de um modo antigo de comer. São Paulo: Três Estrelas, 2018.
HAESBAERT, Rogério. Região, regionalização e regionalidade: questões contemporâneas. Revista Antares, n. 3, jan.-jun. 2010, p. 2-24.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Atlas das representações literárias de regiões brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE, 2006.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Nayara da Silva Stockler Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Analista de Desenvolvimento Agrário na Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo, desde 2014. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente, com ênfase em políticas públicas, extensão rural e desenvolvimento na área da Geografia Agrária. E-mail: nstockler@gmail.comm ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/6969848141664677 |
Revista IDeAS, Rio de Janeiro, volume 15, 1-4, e021004, jan./dez. 2021 • ISSN 1984-9834
[1]Mestranda do programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Presidente Prudente, Brasil; Analista de Desenvolvimento Agrário na Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo "José Gomes da Silva". E-mail: nstockler@gmail.com